segunda-feira, 7 de maio de 2012

Do início do fim: o início

Certamente não sabia como terminar elucubrações de tempos idos, que marcam a intensidade de conhecer o novo. A experiência antropológica-cultural-turística, assim, não pode ser definida. Demorei a escrever tais linhas, para por a pena no teclado e ir tecendo uma tentativa de dar sentido a essas memórias que de recordações tem poucas. Algumas reflexões, apanhados históricos e racionalizações sem sentido, outras mais profundas. Mas o texto está aí, virtual, nessa teia de informações, imagens. Espero que um dia meu rebento leia tais linhas. É na aposta de que essa escritura vai chegar até ele ou ela, que deixo esse percurso ao que há de vir, advir. Foi nesse caminho que descobri a mais fina flor e a futura mãe desse ao qual destino essas palavras.  E é com a poesia que fiz para ela que gostaria de pôr o início no fim, em sua finalidade mais plena:

Flor de Altitude

Nos Andes pude encontrar a sintonia
Nos Andes pude encontrar tranquilidade

Caminhava por aí a vagar no mundo
Queria me libertar buscando liberdade
Inconsciente, desenhava em mapas o
Sentido, faltava fôlego, era difícil respirar


Pensava nas tristes criaturas humanas
Sonhava com vitórias quase míticas
Como da Perseu contra a Górgona
Acreditava que poderia mudar o mundo


Mas nos Andes pude encontrar alegria
Nos ande pude encontrar felicidade


Busquei restos arqueológicos em mim
Vi pedras e construções antigas
Contatei que havia muito a ser
Edificado. Meu futuro estava ali


Admirei o que há de mais fulcral
Percebi os olhos mais lindos a mirar
A sensibilidade, o carinho. O beijo mais
Terno. Pulsava em mim o sangue Inca


Nos Andes encontrei ar e água
No Andes me tornei terra e fogo


Descobri a mais fina sorte
E a vida deixou de ser morte


E nos Andes encontrei mais
Que uma flor, nos Andes
Finalmente toquei Amor


Machu Picchu




domingo, 16 de outubro de 2011

Nirvana

 
Geiser
Ao sul da Bolívia encontrei uma gélida cidade em que o nome se estende ao conjunto de formações geográficas que compõem o Salar. Creio que uma das regiões mais exóticas do planeta, um deserto de sal, donde pouca vida brota. Uyuni certamente é a cidade mais fria na qual estive. Ao certo não posso dizer a temperatura, mas a anedota que passo a descrever ilustrará para o leitor a sensação congelante do local. Durante a noite na estrada, dentro de um veículo sem calefação, estava metido dentro de um “sleep” praticamente todo coberto, só com o rosto pra fora, acrescido das roupas de frio que estavam amontoadas em mim. Ao meu lado havia um Sr. Francês, do qual não posso recordar o nome. Na pouca conversação que tivemos, como em um idioma universal, gestual, hispânico-inglêstico-gaulês, pude entender o sujeito dizer que não sentia frio, porque em seu país, a situação era muito pior, que aquilo não era nada, apenas um friozinho. Sem mais assunto a tratar, depois de passarmos pelas considerações que o monsieur tinha sobre o Brasil (mulheres nuas, putaria, etc.), eis que me ponho a tirar um bom cochilo. Acordei quando o ônibus estava chegando em Uyuni e a primeira coisa que fiz foi olhar para o lado, a cena foi assustadora, o francês estava como um bloco de gelo, parecia esses personagens de desenho animado que ficam com suas estalactites  no nariz. Ele estava tremendo, voltei a fazer a mesma pergunta, se ele estava com frio e a resposta foi praticamente a mesma: “non non, Lyon est très froide”. Ofereci um casaco ao tipo, novamente, mas ele recusou mais uma vez. Bem, acho que esse não é o primeiro francês orgulhoso que conheço, talvez não seja o último, quando estive por lá percebi uma cultura extremamente arrogante, com uma rivalidade acentuada com os ingleses, exalando aquele sentimento de “melhores do mundo”. Ou talvez quando saímos de nossa “pátria” alguma marca expressiva de nossa cultura se torna ainda mais acentuada. Mas enfim, isso aqui pouco importa, quando desci do veículo ao me despedir do “bloco de gelo” escutei: “ahora, si, um poco de frio”. Realmente a cidade estava muito fria. Tive a mesma sensação de Cusco, a de estar em uma torre de babel, ouvindo diversos tipos de idioma. Encontrei pessoas de várias nacionalidades, que do Brasil, quase sempre mencionavam os mesmos assuntos: samba, futebol e mulheres. Nessa andança conheci várias pessoas, mas a minha intenção era chegar até o deserto de sal, o Salar de Uyuni, a maior planície salgada do planeta, a 3.650m de altitude. Localizado à região do altiplano boliviano, o deserto possui uma extensão de 12.000  Km2 e sua formação se deu através do choque das placas tectônicas ao logo de milhares de anos, que elevaram grande parte do oceano, formando um enorme lago de água salgada, que se evaporou lentamente junto aos processos geológicos. A imensidão do Salar produziu em mim, sensação parecida à descrita pelo escritor argentino J.L. Borges, em Historia de la eternidad (1936). Traço impressionante da influência dessa leitura, a noção de tempo do eterno ficou clara quando adentrei nas salineiras. Primeiro por entender a singularidade da questão metafísica levantada pelo argentino, sua posição diante de um conceito tratado tão genericamente na tradição ocidental.  Segundo, pelo fato como o autor reconstruiu  as teorias sobre a noção do Tempo, desde Platão, passando pelas Enéidas de Plotino. Borges oferta sua perpectiva, da qual extraio minha predileção e entendimento: “O tempo, se podemos intuir sua identidade, é uma ilusão: a indiferenciação e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje, bastam para desintegrá-lo (...) a vida é pobre demais para não ser também imortal. Mas nem ao menos temos a certeza de nossa pobreza, posto que o tempo, facilmente refutável no sensível, não o é também no intelectual, de cuja essência parece inseparável o conceito de sucessão”.  Ao dizer sobre a eternidade, descrevendo uma situação corriqueira em sua cidade natal, o narrador se diz sentir como morto, evidenciando a ausência total de si, sem uma aparente instância organizadora do tempo no pano de fundo do enterno. Assim pude me sentir no Salar, em contato com a eternidade, eterno, na finitude do Ser, sem qualquer traço de Narcisismo, despojado dessa capacidade de organizar sequência temporal. Visitei o Cemitério de Trens, marcante pela metáfora que carrega, depois, encontrei com isso que há de eterno em mim, posto que real.  

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Levanta-se Guanaco!

 

A estrada era a mesma, mas o percurso agora revelava novas paisagens e configurações antes não percebidas. A perspectiva focal estava apontada para outro destino. O retorno apresentava uma nova intenção, que consistiu inicialmente em percorrer ao inverso o trajeto empreendido. E assim foi: Cusco, Copacabana e La Paz. Contudo, havia tempo e não bastava um simples regresso, algo mais poderia ser feito com o resto da viagem. Posso dizer que, ainda hoje, o que sobrou dessas experiências são causas, carrego comigo razões e descarto conseqüências inúteis. Sabia que poderia conhecer novos lugares, isso já estava planejado e foi com ímpeto de novidade que parti do “Cementério” da Capital Constitucional da Bolívia para desvelar mais um intrigante sítio arqueológico: Tiahuanaco. Teorias controversas apontam que o local já era habitado por aldeões que ali viviam ali por volta do ano 12.000A.C. De certo modo, dentre a multiplicidade de pesquisas antropológicas, consensualmente estipulam, com relativo grau de confiabilidade, que por volta do ano de 1580A.C foram realizadas as primeiras construções na cidade. O apogeu cultural de Tiahuanaco foi
Puerta del Sol
 alcançado entre os anos de 374D.C à 900D.C, época clássica em que foram erguidos monumentos que fizeram da cidade um grande centro religioso e cultural. Reza a lenda que o nome Tiahuanaco foi originado quando da chegada de um monarca Inca, que subjugou um emissário que veio ao seu encontro, dizendo-lhe: “senta-se guanaco” (guanaco é uma espécie de camelo andino ou lhama), ou em quechua: "Tiai, huanacu". Essa descoberta me pasma, tomei conhecimento que a cultura do Tahuantinsuyo, ao se expandir, colonizou pequenos grupos civilizatórios, dominando-os ideologicamente ou através da guerra. E assim foi com essa cultura   pré-incaica. Os Tiahuanacotas produziram grandes monumentos arquitetônicos, muitos dos quais centrados no valor mitológico e religioso – escultura em blocos de pedra representando monólitos antropomórficos, templos e portais sagrados. Mas foram invadidos e dominados pelos Reinos Collas e posteriormente pelos Incas. Esses últimos incorporaram ao seu império algumas crenças, tecnologias, principalmente a arquitetura; além de conceituações político-religiosas. De fato, o agrupamento histórico revela fatos importantes para o entendimento das culturas que se fundiram para dar origem ao antigo Tahuantinsuyo. No entanto, um aspecto
Monolito Ponce
contribui para o
Monolito Fraile
esquecimento de marcos históricos,  tanto para o povo Colla que habitou a região, quanto para os dominadores Incas. O fator consiste na ausência de  qualquer tipo de escrita que pudesse grafar no tempo acontecimentos em uma coesão histórica. Dois idiomas distintos (aymara e quechua), duas culturas que se assimilaram e fundiram-se, mas que foram submetidas ao choque com o mundo europeu ocidental e seu furor expansionista. Resíduos culturais ainda vivos na gestualidade e saber do povo andino. Em Tiawanacu, a  estratificação social perdurava tal como em Cusco, donde se podia notar a separação territorial dividida em: Hanan (os de cima) e Hurin (os de baixo), notadamente uma divisão entre ente os governantes e os governados. Essa constatação me levou a raciocinar sobre a organização social e sistemas de governança, uma vez que o exercício do poder estava associado 
Hanan
diretamente ao mediadores do mundo divino. De fato, desde um ponto de vista político, noto que um Sistema Monárquico igual ao do Tahuantinsuyo ou de qualquer outra ordem, qualquer um mencionado na história, seriam viáveis apenas em uma sociedade onde a vida política estaria intrinsecamente fundida à Religião, em um Estado Teocrático. Ao trazer essa conversa para nossos dias, pensando em formas de governo  como a República ou a Democracia, percebo que tais Sistemas Políticos prescindem de um Estado Religioso, mas não das Religiões, fundamentais para o estabelecimento de padrões dóceis ao exercício de governança. Acredito que é nesse ponto que poderia me nomear como alguém próximo ao doutrinário Comunista, em sua configuração onde realmente o modelo de Estado poderia 
Hurin
dispensar totalmente os preceitos religiosos, seus mecanismos ideológicos de subserviência. Tal como para as culturas pré-incaicas, para os Incas e colonizadores europeus, a Religião tinha uma função de assegurar violações e conquistas, apregoando a submissão dos dominados, cujo caráter  era inegavelmente político.  Essa demarcação histórica de conflitos no continente Sul das Américas, permite também considerar-me um Freudiano. Isso pelo fato de que as culturas utilizam de modos agressivos para fazerem valer seus interesses, de modo bem semelhante às crianças. Civilizações produzem um conjunto de crenças tão valiosas ao povo, que  por sua vez operam como modos de amenizar a angústia de seus habitantes e ordenar seus devires. No que se refere ao aspecto subjetivo dos cidadãos, a psicanálise atribui aos sentimentos de desamparo da infância à raiz do sentimento religioso,  mecanismo que também constitui as divindades. Pouco antes de escrever esta postagem reli o “Mal estar na Civilização”, texto onde Freud diz com toda veemência que a Religião seria um delírio de massa oriundo do infantilismo psicológico, deformando o quadro da realidade. De fato, a vida política de qualquer país não está isenta desses efeitos, seja em maior ou em menor escala, a Religião encontra função ativa bem semelhante a que era exercida quando dos grandes encontros bélicos ordenados por monarcas expansionistas. Então, utilizando-me de uma orientação política e uma perspectiva ética, me ponho a refletir sobre como seria um Estado de Bem Estar Social, associado à noção de respeito às realidades subjetivas, em um mundo sem a polaridade sádico-masoquista de dominador-dominado, governante-governado, subjugador-subjugante, sem Deuses e mortais, sustentado apenas no Ser, tal como o filósofo de Freiburg no século XX apontou e que o de Paris ampliou – “aquilo que a humanidade fizer de si mesmo, escolhendo com responsabilidade a cada situação livre”. Acha que isso seria possível?

Guanacos

  
Cabeça encravada
Templo semi-subterrâneo e algumas de suas
175 cabeças encravadas




   

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pachamama


Atingir a meta, chegar ao objetivo, desejo nunca satisfeito. Conhecer Machu Picchu me causou uma imensa satisfação, uma sensação de adentrar ao desconhecido, superar as confabulações imaginárias ao longo do percurso e poder reconhecer que todo território tem uma história, contada por muitos. Mas o ponto fundamental, é que pude me tornar protagonista da minha própria, que, antes de ser narrativa, se configurou como uma abertura para um mundo irrefletido bem diferente do “habitus” costumeiro da vida em minha cidade. Isso mesmo, não havia qualquer construção reflexiva acerca dos aspectos culturais com os quais me deparei, apenas uma leve impressão de habitar o Mundo, com todas as dificuldades que o idioma me impunha, a cada nova situação uma maneira de encarar os fatos, sem a rigidez de um repertório previamente conhecido. É engraçado como atualmente verifico aspectos simples da vida cultural aqui no Brasil e me ponho a questionar com outros olhos, com outra configuração de valores, agregados às impressões que tal experiência produziu em mim. Por isso, o leitor deve desconsiderar completamente a centralidade dessa narração, não se trata de uma propriedade, do meu Eu, mas disso que permanece ainda como resto e que tento contornar nessa escrita, que pode ser lida a partir de múltiplos olhares. De fato caminhei por entre pedras, mas com um sentimento de coisa viva, com ânsia de chegar. A reflexão só veio depois, agora, quase cinco anos passados. O retorno à Cusco naquela ocasião, sozinho novamente, provocou-me a impressão de que agora cabia o regresso. Uma mescla de realização e frustração por ter atingido o  
Vista noturna da Plaza de Armas - Cusco
 destino primordial da viagem, por ter satisfeito uma intenção em ato, me fazia querer mais. Muita coisa havia ficado, deixei uma boa parte do orgulho, da insegurança e dos meus medos. Mas encontrei algo muito valioso, que de qualquer modo insistia em permanecer como uma busca. Anos depois vim a entender como a mitologia Inca configura a imago materna: a Pachamama, popularmente conhecida como a mãe-terra. Deidade que ocupa papel central na crença ancestral, que simboliza a fertilidade e a proteção, provedora da vida, mas que cobra um ônus significativo para cada um, uma parcela de responsabilidade mitificada em oferendas ou “pagos a la tierra”, mas que em contrapartida permite o acesso ao Desejo, ao querer e sua gratificação. O vocábulo Pacha pode ser traduzido de diversas maneiras, em quéchua pode significar: mundo, universo e tempo, substantivos que podem estar separados ou contidos nos outros. No catolicismo, a metáfora e metonímia dessa divindade feminina é representada também pela “Virgen de la Candelaria” (na Bolívia sua variação é a da “Virgen de Copacabana”, mencionada no Post: Uma outra Fronteira), cuja oferenda primordial consiste em acender uma vela, para obter a graça do cuidado e iluminação divina. Hoje, sinto que de alguma maneira precisava me reconciliar com isso que representava uma imagem perdida em minha vida, com algo da ordem da feminilidade. Carreguei por longos anos esse traço de ausência, uma falta de cuidado maternal, perdi minha mãe muito cedo. Certamente o mito da Pachamama prestou-se a realizar essa suplência, talvez fosse essa a minha busca, reencontrar-me com achego e vida. Ah, isso fez toda diferença, passei a desejar amor e creio que nessa ocasião realmente o encontrei. De certo modo, isso me faz perceber que quando fazemos turismo, ou adentramos em um local desconhecido, quase sempre estamos poluídos por nossas impressões e conceitos do mundo, nossos valores, nossos hábitos alimentares, etc. Mas há sempre a possibilidade radical de rompermos com aquilo que existe de mais cristalizado em cada um de nós. Definitivamente na volta à Cusco eu já não suportava mais o tempero forte de cominho, queria apenas comer algo costumeiro, nesse momento um bom espaguete era a única solução. No entanto, pressenti duas coisas quando estava para deixar a cidade: a primeira intuição que tive foi a de que retornaria ali, a segunda, que a volta para Belo Horizonte seria tão instigante quanto o percurso rumo ao destino inicial. Reconheço nessas linhas uma perspectiva demasiado antropológica, outras vezes, o tom intimista em minhas descrições torna-se preponderante. Por isso, gostaria de convidar o leitor a descrever suas próprias experiências de viagem, qualquer relato seria produtivo.
Pachamama
Representação pictográfica extraída de um monumento - Museu de Tiahuanaco - Bolívia

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Montanha Jovem

Escrever não foi fácil para mim, na infância tremia ao escutar os berros do meu pai, que exigia que minha grafia fosse como a perfeição da sua. Depois disso nunca mais tive uma letra fixa, traço que sempre se modificou comigo.  Eletrônica atualmente, as linhas com as quais discorro a chegada a um destino são insuficientes para dizer como Machu Picchu deixou de ser uma imaginação minha, para se tornar uma grande descoberta: a de que posso chegar onde bem quiser, inclusive, em locais que carro nenhum me levaria. Naquele setembro de sonhos e lembranças agradáveis, a cidade perdida dos Incas caiu como uma verdadeira recompensa, donde pude extrair algo muito mais valioso do que ouro. Desde Aguas Caliententes subimos caminhando em meio a trilha que atravessa a estrada por onde percorrem os “micros” lotados de turistas. Fui o primeiro a chegar à entrada do santuário e fiquei esperando alguns minutos o restante do grupo: um guia cusqueño, um japonês e três paulistas.  A primeira informação que tive, foi a de que em 1911, Hiran Binghan, o arqueólogo norte-americano, apenas havia redescoberto as ruínas, de maneira destoante da versão difundida mundialmente pela história. Em meados do século XIX o local já era visitado por pesquisadores e muitos nativos tinham conhecimento de sua localização geográfica.  Gosto muito de escutar essas anedotas, que desconstroem versões originais, quase sempre contatas por um norte-americano sempre cheio de boas intenções ao encontrar algo valioso, desses que enquanto puder ser dono de uma descoberta, o Pai, quererá ser. Considerações à parte, a “Ciudad Perdida” permanece como isso que restou,  um conjunto arquitetônico revelado ao mundo em sua imponência, mimetização viva de como viviam alguns dos cidadãos de uma civilização destroçada pela  fúria ganaciosa do espanhóis. Muitas teorias históricas tentam ilustrar o que foi ou representou a cidadela para o Tahuantinsuyo. Há pesquisas que indicam que o local era um santuário religioso habitado por virgens; outras hipóteses apontam para um local que era destinado a ser a casa de campo do antigo imperador Pachacutec, que fugia do inverno rigoroso em Cusco, também comentam sobre a possibilidade de ser um palácio Real, ou, um mausoléu. Enfim, pouco disso importou quando caminhei por suas ruelas e “escaleras”, muito menos os paspalhos que com suas mãos adiante tentavam buscar alguma energia mística do cosmos. Senti esse ímpeto de subir, de chegar ao alto, ignorei totalmente a montanha que da nome ao sítio (velha montanha = Machu Pikchu em quéchua) e fui guiado solitariamente pelo desejo de chegar ao topo do Huayna Picchu, a jovem montanha, com formato simétrico de um rosto esculpido em meio à cordilheira. Sim, chegar ao topo da montanha jovem, ao ponto mais alto de minha juventude. Simbolicamente adulto.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

‘Q´oricancha’

Cusco, impressão histórica viva, síntese de movimentos, efeito da colonização no continente sul, esse mesmo que conhecemos em nome pela alteridade em gênero do italiano Vespúcio.  
‘Q´oricancha’ - Templo de Ouro
Uma cidade onde é possível ver os restos, não só do passado, em sua arquitetura única, ou, de suas extrações arqueológicas, mas de tudo aquilo que permanece ainda mimetizado pelos gestos mais corriqueiros, nas crenças de seus cidadãos, na torre de babel que se edifica em suas ‘calles’. ‘Q´osqo’ impressiona não só pelo ar rarefeito e sua ausência de árvores, da qual só fui me dar conta quando estive ali pela quarta vez, ou pelo desfile colorido de panos que carregam crianças, seus ‘aguayos’, ou pelos rostos de expressiva orientalidade de seus cidadãos que, muitas vezes, ingenuamente pensamos serem de indígenas que andavam nus. Não pelo cheiro de cominho, ou o às vezes acerbo com o qual nos deparamos em suas lanchonetes ou restaurantes, nem tampouco pelo ritmo cosmopolita e noturno de suas ‘dancings’. Como disse antes, Cusco é a própria impressão, estampada em um vale entre as montanhas, uma mescla de elementos universais tão singulares em sua paisagem. Em geral, pode-se dizer que é a porta de entrada para àqueles querem chegar a Macchu Picchu e acaba sendo apenas isso para alguns, cada qual com seu interesse. Mas se adentramos em seu cotidiano, se demoramos um pouco mais em investigar seus meandros descobrimos um patrimônio incalculável, muito maior do que o contido na cidadela perdida que atrai turistas de todo mundo. Se não fosse pela destruição espanhola, seria uma das cidades mais exóticas do mundo, acho que mesmo assim ainda o é. De fato, em seu perímetro urbano nos deparamos com uma série de rasuras, dentre as quais gostaria de citar como exemplo o edifício ‘Q´oricancha’, local donde podemos notar três tempos históricos em sua construção: o pré-incaico, o incaico e espanhol. Esse é um dos locais que vale o esforço para conhecer. Fiquei hospedado ali perto e em minha primeira caminhada por Cusco fui surpreendido pela beleza arquitetônica do prédio, mas quando soube um pouco mais sobre sua história, fiquei a sorrir um bom tempo, em silêncio contemplativo. Recordei do exemplo de S. Freud, extraído das Cinco Lições, quando utilizou a metáfora dos monumentos conhecidos pelos ingleses como Charing Cross e The Monument para clarificar a vida dos doentes que sofreriam de reminiscências passadas. Sigmund faz menção ao sintoma neurótico em sua analogia ao sofrimento de um londrino que supostamente choraria diante de um monumento erguido em homenagem ao cortejo fúnebre de uma rainha ou diante de outro marco construído para reviver a memória de um incêndio que afetou Londres no século XVII. Símbolos mnêmicos de experiências pregressas, os sintomas são fixados como tais edificações e funcionam como traços de memória. Interessante generalização, mas essa lógica dificilmente seria aplicada ao ‘Q´oricancha’, levando-se em consideração sobre qual papel sua construção teria para a memória da cidade de Cusco. Aponto ao leitor meus motivos para esse raciocínio, é que em cima das ruínas do Templo de Ouro, local destinado aos rituais sagrados de maior expressividade, ofertados a deidade Inca suprema: Inty (Sol), foi construído por ordem de Francisco Pizzaro - sanguinolento conquistador - o Convento de Santo Domingo.
 
Vista lateral do Convento de Santo Domingo

Esse local, de onde se originou a primeira universidade das Américas (San Marcos), foi antecedido por um dos locais sagrados mais importantes no tempo do Tahuantinsuyo, que possuía uma ornamentação com paredes em completo ouro antes da pilhagem espanhola. O fato é que as construções Incaicas são tão resistentes ao tempo, são erguidas para permanecerem intactas, que vários terremotos derrubaram o barroco europeu, mas nunca as paredes do antigo tempo que tentaram esconder. Na década de 90, uma escavação arqueológica pôde encontrar em seu entorno, abaixo inclusive do muro Inca, um muro ainda mais antigo, do qual ainda não se sabe precisar sua origem, os hábitos ou até mesmo quem eram seus construtores. Três estratificações em um verdadeiro monumento do tempo e da memória de uma cidade. Diferente dos exemplos trazidos por Freud, o ‘Q´oricancha’ não é só um símbolo mnêmico, mas a rasura, a obliteração de vários traços, perdidos no choque entre culturas tão diferentes, é uma construção que se aproxima metaforicamente muito mais do que vem a ser o sintoma para o neurótico: uma construção muito mais para fazer esquecer algo, do que para recordá-lo. Gostaria de conversar sobre isso com amigos psicanalistas.
 

Vista do antigo Templo do Sol, atual Igreja e Convento de Santo Domingo. Abaixo: muro de contrução pré-incaica.
  


domingo, 7 de agosto de 2011

Uma outra fronteira

Copacabana - Bolívia
No caminho até Kasani, cidade fronteiriça entre Peru e Bolívia, encontrava-se a pequena cidade de Copacabana, com seus 3.840 metros acima do nível do mar. Local onde pude ver o sol se pôr de maneira esplendorosa, diante da imensidão do lago navegável mais alto do mundo, parecia mesmo estar diante do oceano e sua linha do horizonte. Ainda me recordo das praias gélidas desse vilarejo, com um nome familiar aos brasileiros, que associam imediatamente a famosa praia carioca, mas que não oferta outra semelhança além de tal sonoridade. Quando cheguei, após deixar a mochila no hotel, senti um ímpeto de subir um pequeno serro, uma ânsia de mirar o cair do sol. Pensava mais uma vez no que cabia a história rasurar o passado. 
Pôr do sol - Lago Titicaca
 Descobri pelas andanças que “Copakawana” era a divindade andina símbolo da fertilidade e o território, com localização estratégica às margens do Titicaca, era assim chamado devido oferendas e cultos religiosos à deidade. A cidade se transformou em Nossa Senhora de Copacabana logo após a tomada pelos espanhóis, com a subsequente fundação de sua igreja católica de mesmo nome no local do antigo templo. Assim, pude constatar que o espaço anteriormente destinado ao “profano”, na atualidade manifesta cultos e oferendas à “Virgen de Copacabana”. Local de peregrinação, muitos levam seus automóveis e bens para a benção da Virgem, o que ainda configura para os dois países um sítio sagrado. Anos mais tarde, lendo os “Comentarios Reales”, de Garcilaso de la Vega, descobri que o berço da cultura incaica estava há alguns metros dali, em uma pequena ilha, denominada “del Sol” 
Isla del Sol
. Foi nesse pedaço de terra que nasceu o primeiro inca, Manco Capac, fundador da Q´osqo. O filho do sol, o primeiro monarca inca, deixou aos súditos uma moral fundamental para a sobrevivência coletiva, sustentada em três pilares: “Ama Sua”, “Ama Llulla” e “Ama Qilla”, significantes quéchuas que sucessivamente querem dizer: não roubar, não mentir e não ser preguiçoso. Talvez por esses preceitos um grande império, o Tawantinsuyo, tenha chegado ao ano de 1500 com uma população de cerca 14 milhões de habitantes, dos quais os registros históricos dão indícios de que não havia fome, nem tampouco miserabilidade. De fato, minha curiosidade por essa civilização se tornou explícita nessa cidade. Outro fator significativo, que aprendi ao caminhar pela Isla del Sol, foi como os antepassados lidavam com a temática da morte. As mumificações eram hábito comum, não só para os “nobres”, mas para a população em geral.  A crença era baseada no fato de que ao
Representação de um altar com oferenda aos antepassados
 morto eram ofertados os mesmos itens, inclusive alimentos, oferecidos aos vivos. Dessa forma, os entes queridos eram deixados em locais sagrados, dentro ou perto dos domicílios, donde constantemente eram reverenciados. Quando obtive essa informação de um guia local, compreendi o fato de que os cemitérios por toda Bolívia são floridos e cuidados, com presença constante de pessoas. Penso que por lá a morte é algo lembrado e reificado, diferente de como muitos de nós brasileiros a tratamos. Inquietante essa questão: como cada cultura, em diferentes contextos, simboliza o insimbolizável da morte? Antes de atravessar a fronteira, após a visita à famosa Isla, havia me dado conta que já não estava mais sozinho, uma vez que viajava com um grupo de paulistanos, rumo à antiga capital imperial: Cusco.