domingo, 16 de outubro de 2011

Nirvana

 
Geiser
Ao sul da Bolívia encontrei uma gélida cidade em que o nome se estende ao conjunto de formações geográficas que compõem o Salar. Creio que uma das regiões mais exóticas do planeta, um deserto de sal, donde pouca vida brota. Uyuni certamente é a cidade mais fria na qual estive. Ao certo não posso dizer a temperatura, mas a anedota que passo a descrever ilustrará para o leitor a sensação congelante do local. Durante a noite na estrada, dentro de um veículo sem calefação, estava metido dentro de um “sleep” praticamente todo coberto, só com o rosto pra fora, acrescido das roupas de frio que estavam amontoadas em mim. Ao meu lado havia um Sr. Francês, do qual não posso recordar o nome. Na pouca conversação que tivemos, como em um idioma universal, gestual, hispânico-inglêstico-gaulês, pude entender o sujeito dizer que não sentia frio, porque em seu país, a situação era muito pior, que aquilo não era nada, apenas um friozinho. Sem mais assunto a tratar, depois de passarmos pelas considerações que o monsieur tinha sobre o Brasil (mulheres nuas, putaria, etc.), eis que me ponho a tirar um bom cochilo. Acordei quando o ônibus estava chegando em Uyuni e a primeira coisa que fiz foi olhar para o lado, a cena foi assustadora, o francês estava como um bloco de gelo, parecia esses personagens de desenho animado que ficam com suas estalactites  no nariz. Ele estava tremendo, voltei a fazer a mesma pergunta, se ele estava com frio e a resposta foi praticamente a mesma: “non non, Lyon est très froide”. Ofereci um casaco ao tipo, novamente, mas ele recusou mais uma vez. Bem, acho que esse não é o primeiro francês orgulhoso que conheço, talvez não seja o último, quando estive por lá percebi uma cultura extremamente arrogante, com uma rivalidade acentuada com os ingleses, exalando aquele sentimento de “melhores do mundo”. Ou talvez quando saímos de nossa “pátria” alguma marca expressiva de nossa cultura se torna ainda mais acentuada. Mas enfim, isso aqui pouco importa, quando desci do veículo ao me despedir do “bloco de gelo” escutei: “ahora, si, um poco de frio”. Realmente a cidade estava muito fria. Tive a mesma sensação de Cusco, a de estar em uma torre de babel, ouvindo diversos tipos de idioma. Encontrei pessoas de várias nacionalidades, que do Brasil, quase sempre mencionavam os mesmos assuntos: samba, futebol e mulheres. Nessa andança conheci várias pessoas, mas a minha intenção era chegar até o deserto de sal, o Salar de Uyuni, a maior planície salgada do planeta, a 3.650m de altitude. Localizado à região do altiplano boliviano, o deserto possui uma extensão de 12.000  Km2 e sua formação se deu através do choque das placas tectônicas ao logo de milhares de anos, que elevaram grande parte do oceano, formando um enorme lago de água salgada, que se evaporou lentamente junto aos processos geológicos. A imensidão do Salar produziu em mim, sensação parecida à descrita pelo escritor argentino J.L. Borges, em Historia de la eternidad (1936). Traço impressionante da influência dessa leitura, a noção de tempo do eterno ficou clara quando adentrei nas salineiras. Primeiro por entender a singularidade da questão metafísica levantada pelo argentino, sua posição diante de um conceito tratado tão genericamente na tradição ocidental.  Segundo, pelo fato como o autor reconstruiu  as teorias sobre a noção do Tempo, desde Platão, passando pelas Enéidas de Plotino. Borges oferta sua perpectiva, da qual extraio minha predileção e entendimento: “O tempo, se podemos intuir sua identidade, é uma ilusão: a indiferenciação e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje, bastam para desintegrá-lo (...) a vida é pobre demais para não ser também imortal. Mas nem ao menos temos a certeza de nossa pobreza, posto que o tempo, facilmente refutável no sensível, não o é também no intelectual, de cuja essência parece inseparável o conceito de sucessão”.  Ao dizer sobre a eternidade, descrevendo uma situação corriqueira em sua cidade natal, o narrador se diz sentir como morto, evidenciando a ausência total de si, sem uma aparente instância organizadora do tempo no pano de fundo do enterno. Assim pude me sentir no Salar, em contato com a eternidade, eterno, na finitude do Ser, sem qualquer traço de Narcisismo, despojado dessa capacidade de organizar sequência temporal. Visitei o Cemitério de Trens, marcante pela metáfora que carrega, depois, encontrei com isso que há de eterno em mim, posto que real.