terça-feira, 26 de julho de 2011

Kevin & Maria de los Angeles

Trem da Morte - Estação Puerto Quijarro

Santa Cruz de la Sierra - Plaza 24 de septiembr
Adentrar em um país desconhecido por via terrestre me parece sempre uma experiência curiosa. Claro que  há uma boa dose de imaginário sobre a cultura, os costumes, os hábitos e a língua dos cidadãos, mas não são esses aspectos que costumam chamar a minha atenção. O que mais me intriga são os que junto comigo fazem a travessia. Observo com aguçada intuição voyeurística os demais e isso quase sempre me provoca riso. O mais engraçado é que não sinto esse prazer quando estou só, não consigo me perceber quando me desloco até um determinado destino, realizando os trâmites legais, passaporte, registro e tal, até encontrar um local para hospedar. Naquele setembro eu sentia algo antes de adentrar pela Bolívia, já havia dormido por duas noites em Corumbá e estava entediado com a cidade, permanecendo em função da disponibilidade de horário dos coches, sem muita coisa para fazer – era ansiedade, ou vigor de ser e chegar. Tinha que pegar o Trem depois da aduana, mineiro como sou, não podia perder esse trem. Dentro de Puerto Quijaro, com minha mochila, era só embarcar, já tinha comprado o boleto ainda no Brasil e cruzei a linha imaginária poucos minutos antes da saída do famoso Trem da Morte. Muitos turistas, mochileiros, alguns desesperados com suas equipagens, outros com bagagem de mão, miscelânea de sotaques. Eu e o livro-guia, leitura de alguns roteiros, o que possivelmente estaria por vir. Um sotaque espanhol no português do casal ao meu lado. Pensei comigo que poderiam ser turistas de meia idade, voltei à leitura. Uma garota de Brasília me pediu informações sobre a rota para Cusco e lhe emprestei o guia. A mulher ao lado se dirigiu a mim e perguntou: vai para Machu Picchu? A resposta imediata produziu horas de conversação com o casal, cujo índice de misericórdia haveria explodido se a humanidade tivesse inventado uma máquina para medi-lo. Maria era uma senhora mãe de cinco filhos, dona de casa que acompanhava o marido em suas viagens, ela de La Paz, ele, Kevin, de Potosí. Todas as dicas da cidade destino, Santa Cruz de la Sierra, foram repassadas por ambos: hostel, local para comer, informações turísticas, tudo, até um local para reparar meu MP4, inclusive me acompanharam. Kevin era um recém convertido ao evangelho e se mostrava muito trabalhador. Com Maria e os filhos, eles viviam em Corumbá, local de onde agregavam várias encomendas de serviços gráficos e plotagem, para realizá-los do outro lado da fronteira. Realizavam serviços em Pesos bolivianos e cobravam preço em Real, assim extraiam uma margem de lucro donde podiam sobreviver. Posso dizer que eram Borderlines, sem chiste, viviam na fronteira mesmo, eram do “limite”. Ambos foram me orientando sobre a cultura Andina. Kevin me dizia sobre o santuário de Samaipata, um local destinado aos rituais religiosos, com ruínas e muita história, que pude ver com meus próprios olhos.

Samaipata

Traçamos planos para minha viagem, muitas dicas sobre as cidades bolivianas, locais que deveria evitar, roteiros econômicos de tempo e dinheiro, realmente me ajudaram bastante. Antes de partir eu havia comentado com os dois que poderia trazer grupos de turistas brasileiros para conhecer a Bolívia, Kevin se tornou muito otimista com isso e fez planos. Eu já tinha inclusive um local para ficar ao regressar da Bolívia. Maria era de los Angeles, muito atenciosa, senti um carinho maternal, um cuidado que momentaneamente preencheu esse buraco deixado pela ausência materna em minha vida, coisa que depois dos onze anos nunca mais havia sentido. E lembrar que antes, no Brasil, os colegas e demais pessoas me diziam que eu era louco de viajar sozinho, que eu poderia encontrar pessoas más, que os bolivianos estavam quase em guerra com o Brasil, pela estatização da Petrobrás comandada por Evo. Tudo ao avesso. Certamente esse encontro foi fundamental para descobrir que boas pessoas existem, logo eu, tão preconceituoso com pessoas religiosas, fui rendido pela coragem desse casal, pelo sentimento que manifestavam um pelo outro, pelo cuidado comigo. Mantivemos contato mesmo anos após a viagem e meu coração doeu profundamente quando Maria me telefonou e disse que seu marido havia falecido subitamente. Olha o que o amigo me deixou de recordação: Samaipata. Alguns anos depois, conversando com minha esposa, pude entender o significado dessa palavra, que em quechua quer dizer: Samai/descanso e pata/lugar, ou seja: lugar de descanso.
Samaipata

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