domingo, 16 de outubro de 2011

Nirvana

 
Geiser
Ao sul da Bolívia encontrei uma gélida cidade em que o nome se estende ao conjunto de formações geográficas que compõem o Salar. Creio que uma das regiões mais exóticas do planeta, um deserto de sal, donde pouca vida brota. Uyuni certamente é a cidade mais fria na qual estive. Ao certo não posso dizer a temperatura, mas a anedota que passo a descrever ilustrará para o leitor a sensação congelante do local. Durante a noite na estrada, dentro de um veículo sem calefação, estava metido dentro de um “sleep” praticamente todo coberto, só com o rosto pra fora, acrescido das roupas de frio que estavam amontoadas em mim. Ao meu lado havia um Sr. Francês, do qual não posso recordar o nome. Na pouca conversação que tivemos, como em um idioma universal, gestual, hispânico-inglêstico-gaulês, pude entender o sujeito dizer que não sentia frio, porque em seu país, a situação era muito pior, que aquilo não era nada, apenas um friozinho. Sem mais assunto a tratar, depois de passarmos pelas considerações que o monsieur tinha sobre o Brasil (mulheres nuas, putaria, etc.), eis que me ponho a tirar um bom cochilo. Acordei quando o ônibus estava chegando em Uyuni e a primeira coisa que fiz foi olhar para o lado, a cena foi assustadora, o francês estava como um bloco de gelo, parecia esses personagens de desenho animado que ficam com suas estalactites  no nariz. Ele estava tremendo, voltei a fazer a mesma pergunta, se ele estava com frio e a resposta foi praticamente a mesma: “non non, Lyon est très froide”. Ofereci um casaco ao tipo, novamente, mas ele recusou mais uma vez. Bem, acho que esse não é o primeiro francês orgulhoso que conheço, talvez não seja o último, quando estive por lá percebi uma cultura extremamente arrogante, com uma rivalidade acentuada com os ingleses, exalando aquele sentimento de “melhores do mundo”. Ou talvez quando saímos de nossa “pátria” alguma marca expressiva de nossa cultura se torna ainda mais acentuada. Mas enfim, isso aqui pouco importa, quando desci do veículo ao me despedir do “bloco de gelo” escutei: “ahora, si, um poco de frio”. Realmente a cidade estava muito fria. Tive a mesma sensação de Cusco, a de estar em uma torre de babel, ouvindo diversos tipos de idioma. Encontrei pessoas de várias nacionalidades, que do Brasil, quase sempre mencionavam os mesmos assuntos: samba, futebol e mulheres. Nessa andança conheci várias pessoas, mas a minha intenção era chegar até o deserto de sal, o Salar de Uyuni, a maior planície salgada do planeta, a 3.650m de altitude. Localizado à região do altiplano boliviano, o deserto possui uma extensão de 12.000  Km2 e sua formação se deu através do choque das placas tectônicas ao logo de milhares de anos, que elevaram grande parte do oceano, formando um enorme lago de água salgada, que se evaporou lentamente junto aos processos geológicos. A imensidão do Salar produziu em mim, sensação parecida à descrita pelo escritor argentino J.L. Borges, em Historia de la eternidad (1936). Traço impressionante da influência dessa leitura, a noção de tempo do eterno ficou clara quando adentrei nas salineiras. Primeiro por entender a singularidade da questão metafísica levantada pelo argentino, sua posição diante de um conceito tratado tão genericamente na tradição ocidental.  Segundo, pelo fato como o autor reconstruiu  as teorias sobre a noção do Tempo, desde Platão, passando pelas Enéidas de Plotino. Borges oferta sua perpectiva, da qual extraio minha predileção e entendimento: “O tempo, se podemos intuir sua identidade, é uma ilusão: a indiferenciação e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje, bastam para desintegrá-lo (...) a vida é pobre demais para não ser também imortal. Mas nem ao menos temos a certeza de nossa pobreza, posto que o tempo, facilmente refutável no sensível, não o é também no intelectual, de cuja essência parece inseparável o conceito de sucessão”.  Ao dizer sobre a eternidade, descrevendo uma situação corriqueira em sua cidade natal, o narrador se diz sentir como morto, evidenciando a ausência total de si, sem uma aparente instância organizadora do tempo no pano de fundo do enterno. Assim pude me sentir no Salar, em contato com a eternidade, eterno, na finitude do Ser, sem qualquer traço de Narcisismo, despojado dessa capacidade de organizar sequência temporal. Visitei o Cemitério de Trens, marcante pela metáfora que carrega, depois, encontrei com isso que há de eterno em mim, posto que real.  

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Levanta-se Guanaco!

 

A estrada era a mesma, mas o percurso agora revelava novas paisagens e configurações antes não percebidas. A perspectiva focal estava apontada para outro destino. O retorno apresentava uma nova intenção, que consistiu inicialmente em percorrer ao inverso o trajeto empreendido. E assim foi: Cusco, Copacabana e La Paz. Contudo, havia tempo e não bastava um simples regresso, algo mais poderia ser feito com o resto da viagem. Posso dizer que, ainda hoje, o que sobrou dessas experiências são causas, carrego comigo razões e descarto conseqüências inúteis. Sabia que poderia conhecer novos lugares, isso já estava planejado e foi com ímpeto de novidade que parti do “Cementério” da Capital Constitucional da Bolívia para desvelar mais um intrigante sítio arqueológico: Tiahuanaco. Teorias controversas apontam que o local já era habitado por aldeões que ali viviam ali por volta do ano 12.000A.C. De certo modo, dentre a multiplicidade de pesquisas antropológicas, consensualmente estipulam, com relativo grau de confiabilidade, que por volta do ano de 1580A.C foram realizadas as primeiras construções na cidade. O apogeu cultural de Tiahuanaco foi
Puerta del Sol
 alcançado entre os anos de 374D.C à 900D.C, época clássica em que foram erguidos monumentos que fizeram da cidade um grande centro religioso e cultural. Reza a lenda que o nome Tiahuanaco foi originado quando da chegada de um monarca Inca, que subjugou um emissário que veio ao seu encontro, dizendo-lhe: “senta-se guanaco” (guanaco é uma espécie de camelo andino ou lhama), ou em quechua: "Tiai, huanacu". Essa descoberta me pasma, tomei conhecimento que a cultura do Tahuantinsuyo, ao se expandir, colonizou pequenos grupos civilizatórios, dominando-os ideologicamente ou através da guerra. E assim foi com essa cultura   pré-incaica. Os Tiahuanacotas produziram grandes monumentos arquitetônicos, muitos dos quais centrados no valor mitológico e religioso – escultura em blocos de pedra representando monólitos antropomórficos, templos e portais sagrados. Mas foram invadidos e dominados pelos Reinos Collas e posteriormente pelos Incas. Esses últimos incorporaram ao seu império algumas crenças, tecnologias, principalmente a arquitetura; além de conceituações político-religiosas. De fato, o agrupamento histórico revela fatos importantes para o entendimento das culturas que se fundiram para dar origem ao antigo Tahuantinsuyo. No entanto, um aspecto
Monolito Ponce
contribui para o
Monolito Fraile
esquecimento de marcos históricos,  tanto para o povo Colla que habitou a região, quanto para os dominadores Incas. O fator consiste na ausência de  qualquer tipo de escrita que pudesse grafar no tempo acontecimentos em uma coesão histórica. Dois idiomas distintos (aymara e quechua), duas culturas que se assimilaram e fundiram-se, mas que foram submetidas ao choque com o mundo europeu ocidental e seu furor expansionista. Resíduos culturais ainda vivos na gestualidade e saber do povo andino. Em Tiawanacu, a  estratificação social perdurava tal como em Cusco, donde se podia notar a separação territorial dividida em: Hanan (os de cima) e Hurin (os de baixo), notadamente uma divisão entre ente os governantes e os governados. Essa constatação me levou a raciocinar sobre a organização social e sistemas de governança, uma vez que o exercício do poder estava associado 
Hanan
diretamente ao mediadores do mundo divino. De fato, desde um ponto de vista político, noto que um Sistema Monárquico igual ao do Tahuantinsuyo ou de qualquer outra ordem, qualquer um mencionado na história, seriam viáveis apenas em uma sociedade onde a vida política estaria intrinsecamente fundida à Religião, em um Estado Teocrático. Ao trazer essa conversa para nossos dias, pensando em formas de governo  como a República ou a Democracia, percebo que tais Sistemas Políticos prescindem de um Estado Religioso, mas não das Religiões, fundamentais para o estabelecimento de padrões dóceis ao exercício de governança. Acredito que é nesse ponto que poderia me nomear como alguém próximo ao doutrinário Comunista, em sua configuração onde realmente o modelo de Estado poderia 
Hurin
dispensar totalmente os preceitos religiosos, seus mecanismos ideológicos de subserviência. Tal como para as culturas pré-incaicas, para os Incas e colonizadores europeus, a Religião tinha uma função de assegurar violações e conquistas, apregoando a submissão dos dominados, cujo caráter  era inegavelmente político.  Essa demarcação histórica de conflitos no continente Sul das Américas, permite também considerar-me um Freudiano. Isso pelo fato de que as culturas utilizam de modos agressivos para fazerem valer seus interesses, de modo bem semelhante às crianças. Civilizações produzem um conjunto de crenças tão valiosas ao povo, que  por sua vez operam como modos de amenizar a angústia de seus habitantes e ordenar seus devires. No que se refere ao aspecto subjetivo dos cidadãos, a psicanálise atribui aos sentimentos de desamparo da infância à raiz do sentimento religioso,  mecanismo que também constitui as divindades. Pouco antes de escrever esta postagem reli o “Mal estar na Civilização”, texto onde Freud diz com toda veemência que a Religião seria um delírio de massa oriundo do infantilismo psicológico, deformando o quadro da realidade. De fato, a vida política de qualquer país não está isenta desses efeitos, seja em maior ou em menor escala, a Religião encontra função ativa bem semelhante a que era exercida quando dos grandes encontros bélicos ordenados por monarcas expansionistas. Então, utilizando-me de uma orientação política e uma perspectiva ética, me ponho a refletir sobre como seria um Estado de Bem Estar Social, associado à noção de respeito às realidades subjetivas, em um mundo sem a polaridade sádico-masoquista de dominador-dominado, governante-governado, subjugador-subjugante, sem Deuses e mortais, sustentado apenas no Ser, tal como o filósofo de Freiburg no século XX apontou e que o de Paris ampliou – “aquilo que a humanidade fizer de si mesmo, escolhendo com responsabilidade a cada situação livre”. Acha que isso seria possível?

Guanacos

  
Cabeça encravada
Templo semi-subterrâneo e algumas de suas
175 cabeças encravadas




   

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pachamama


Atingir a meta, chegar ao objetivo, desejo nunca satisfeito. Conhecer Machu Picchu me causou uma imensa satisfação, uma sensação de adentrar ao desconhecido, superar as confabulações imaginárias ao longo do percurso e poder reconhecer que todo território tem uma história, contada por muitos. Mas o ponto fundamental, é que pude me tornar protagonista da minha própria, que, antes de ser narrativa, se configurou como uma abertura para um mundo irrefletido bem diferente do “habitus” costumeiro da vida em minha cidade. Isso mesmo, não havia qualquer construção reflexiva acerca dos aspectos culturais com os quais me deparei, apenas uma leve impressão de habitar o Mundo, com todas as dificuldades que o idioma me impunha, a cada nova situação uma maneira de encarar os fatos, sem a rigidez de um repertório previamente conhecido. É engraçado como atualmente verifico aspectos simples da vida cultural aqui no Brasil e me ponho a questionar com outros olhos, com outra configuração de valores, agregados às impressões que tal experiência produziu em mim. Por isso, o leitor deve desconsiderar completamente a centralidade dessa narração, não se trata de uma propriedade, do meu Eu, mas disso que permanece ainda como resto e que tento contornar nessa escrita, que pode ser lida a partir de múltiplos olhares. De fato caminhei por entre pedras, mas com um sentimento de coisa viva, com ânsia de chegar. A reflexão só veio depois, agora, quase cinco anos passados. O retorno à Cusco naquela ocasião, sozinho novamente, provocou-me a impressão de que agora cabia o regresso. Uma mescla de realização e frustração por ter atingido o  
Vista noturna da Plaza de Armas - Cusco
 destino primordial da viagem, por ter satisfeito uma intenção em ato, me fazia querer mais. Muita coisa havia ficado, deixei uma boa parte do orgulho, da insegurança e dos meus medos. Mas encontrei algo muito valioso, que de qualquer modo insistia em permanecer como uma busca. Anos depois vim a entender como a mitologia Inca configura a imago materna: a Pachamama, popularmente conhecida como a mãe-terra. Deidade que ocupa papel central na crença ancestral, que simboliza a fertilidade e a proteção, provedora da vida, mas que cobra um ônus significativo para cada um, uma parcela de responsabilidade mitificada em oferendas ou “pagos a la tierra”, mas que em contrapartida permite o acesso ao Desejo, ao querer e sua gratificação. O vocábulo Pacha pode ser traduzido de diversas maneiras, em quéchua pode significar: mundo, universo e tempo, substantivos que podem estar separados ou contidos nos outros. No catolicismo, a metáfora e metonímia dessa divindade feminina é representada também pela “Virgen de la Candelaria” (na Bolívia sua variação é a da “Virgen de Copacabana”, mencionada no Post: Uma outra Fronteira), cuja oferenda primordial consiste em acender uma vela, para obter a graça do cuidado e iluminação divina. Hoje, sinto que de alguma maneira precisava me reconciliar com isso que representava uma imagem perdida em minha vida, com algo da ordem da feminilidade. Carreguei por longos anos esse traço de ausência, uma falta de cuidado maternal, perdi minha mãe muito cedo. Certamente o mito da Pachamama prestou-se a realizar essa suplência, talvez fosse essa a minha busca, reencontrar-me com achego e vida. Ah, isso fez toda diferença, passei a desejar amor e creio que nessa ocasião realmente o encontrei. De certo modo, isso me faz perceber que quando fazemos turismo, ou adentramos em um local desconhecido, quase sempre estamos poluídos por nossas impressões e conceitos do mundo, nossos valores, nossos hábitos alimentares, etc. Mas há sempre a possibilidade radical de rompermos com aquilo que existe de mais cristalizado em cada um de nós. Definitivamente na volta à Cusco eu já não suportava mais o tempero forte de cominho, queria apenas comer algo costumeiro, nesse momento um bom espaguete era a única solução. No entanto, pressenti duas coisas quando estava para deixar a cidade: a primeira intuição que tive foi a de que retornaria ali, a segunda, que a volta para Belo Horizonte seria tão instigante quanto o percurso rumo ao destino inicial. Reconheço nessas linhas uma perspectiva demasiado antropológica, outras vezes, o tom intimista em minhas descrições torna-se preponderante. Por isso, gostaria de convidar o leitor a descrever suas próprias experiências de viagem, qualquer relato seria produtivo.
Pachamama
Representação pictográfica extraída de um monumento - Museu de Tiahuanaco - Bolívia

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Montanha Jovem

Escrever não foi fácil para mim, na infância tremia ao escutar os berros do meu pai, que exigia que minha grafia fosse como a perfeição da sua. Depois disso nunca mais tive uma letra fixa, traço que sempre se modificou comigo.  Eletrônica atualmente, as linhas com as quais discorro a chegada a um destino são insuficientes para dizer como Machu Picchu deixou de ser uma imaginação minha, para se tornar uma grande descoberta: a de que posso chegar onde bem quiser, inclusive, em locais que carro nenhum me levaria. Naquele setembro de sonhos e lembranças agradáveis, a cidade perdida dos Incas caiu como uma verdadeira recompensa, donde pude extrair algo muito mais valioso do que ouro. Desde Aguas Caliententes subimos caminhando em meio a trilha que atravessa a estrada por onde percorrem os “micros” lotados de turistas. Fui o primeiro a chegar à entrada do santuário e fiquei esperando alguns minutos o restante do grupo: um guia cusqueño, um japonês e três paulistas.  A primeira informação que tive, foi a de que em 1911, Hiran Binghan, o arqueólogo norte-americano, apenas havia redescoberto as ruínas, de maneira destoante da versão difundida mundialmente pela história. Em meados do século XIX o local já era visitado por pesquisadores e muitos nativos tinham conhecimento de sua localização geográfica.  Gosto muito de escutar essas anedotas, que desconstroem versões originais, quase sempre contatas por um norte-americano sempre cheio de boas intenções ao encontrar algo valioso, desses que enquanto puder ser dono de uma descoberta, o Pai, quererá ser. Considerações à parte, a “Ciudad Perdida” permanece como isso que restou,  um conjunto arquitetônico revelado ao mundo em sua imponência, mimetização viva de como viviam alguns dos cidadãos de uma civilização destroçada pela  fúria ganaciosa do espanhóis. Muitas teorias históricas tentam ilustrar o que foi ou representou a cidadela para o Tahuantinsuyo. Há pesquisas que indicam que o local era um santuário religioso habitado por virgens; outras hipóteses apontam para um local que era destinado a ser a casa de campo do antigo imperador Pachacutec, que fugia do inverno rigoroso em Cusco, também comentam sobre a possibilidade de ser um palácio Real, ou, um mausoléu. Enfim, pouco disso importou quando caminhei por suas ruelas e “escaleras”, muito menos os paspalhos que com suas mãos adiante tentavam buscar alguma energia mística do cosmos. Senti esse ímpeto de subir, de chegar ao alto, ignorei totalmente a montanha que da nome ao sítio (velha montanha = Machu Pikchu em quéchua) e fui guiado solitariamente pelo desejo de chegar ao topo do Huayna Picchu, a jovem montanha, com formato simétrico de um rosto esculpido em meio à cordilheira. Sim, chegar ao topo da montanha jovem, ao ponto mais alto de minha juventude. Simbolicamente adulto.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

‘Q´oricancha’

Cusco, impressão histórica viva, síntese de movimentos, efeito da colonização no continente sul, esse mesmo que conhecemos em nome pela alteridade em gênero do italiano Vespúcio.  
‘Q´oricancha’ - Templo de Ouro
Uma cidade onde é possível ver os restos, não só do passado, em sua arquitetura única, ou, de suas extrações arqueológicas, mas de tudo aquilo que permanece ainda mimetizado pelos gestos mais corriqueiros, nas crenças de seus cidadãos, na torre de babel que se edifica em suas ‘calles’. ‘Q´osqo’ impressiona não só pelo ar rarefeito e sua ausência de árvores, da qual só fui me dar conta quando estive ali pela quarta vez, ou pelo desfile colorido de panos que carregam crianças, seus ‘aguayos’, ou pelos rostos de expressiva orientalidade de seus cidadãos que, muitas vezes, ingenuamente pensamos serem de indígenas que andavam nus. Não pelo cheiro de cominho, ou o às vezes acerbo com o qual nos deparamos em suas lanchonetes ou restaurantes, nem tampouco pelo ritmo cosmopolita e noturno de suas ‘dancings’. Como disse antes, Cusco é a própria impressão, estampada em um vale entre as montanhas, uma mescla de elementos universais tão singulares em sua paisagem. Em geral, pode-se dizer que é a porta de entrada para àqueles querem chegar a Macchu Picchu e acaba sendo apenas isso para alguns, cada qual com seu interesse. Mas se adentramos em seu cotidiano, se demoramos um pouco mais em investigar seus meandros descobrimos um patrimônio incalculável, muito maior do que o contido na cidadela perdida que atrai turistas de todo mundo. Se não fosse pela destruição espanhola, seria uma das cidades mais exóticas do mundo, acho que mesmo assim ainda o é. De fato, em seu perímetro urbano nos deparamos com uma série de rasuras, dentre as quais gostaria de citar como exemplo o edifício ‘Q´oricancha’, local donde podemos notar três tempos históricos em sua construção: o pré-incaico, o incaico e espanhol. Esse é um dos locais que vale o esforço para conhecer. Fiquei hospedado ali perto e em minha primeira caminhada por Cusco fui surpreendido pela beleza arquitetônica do prédio, mas quando soube um pouco mais sobre sua história, fiquei a sorrir um bom tempo, em silêncio contemplativo. Recordei do exemplo de S. Freud, extraído das Cinco Lições, quando utilizou a metáfora dos monumentos conhecidos pelos ingleses como Charing Cross e The Monument para clarificar a vida dos doentes que sofreriam de reminiscências passadas. Sigmund faz menção ao sintoma neurótico em sua analogia ao sofrimento de um londrino que supostamente choraria diante de um monumento erguido em homenagem ao cortejo fúnebre de uma rainha ou diante de outro marco construído para reviver a memória de um incêndio que afetou Londres no século XVII. Símbolos mnêmicos de experiências pregressas, os sintomas são fixados como tais edificações e funcionam como traços de memória. Interessante generalização, mas essa lógica dificilmente seria aplicada ao ‘Q´oricancha’, levando-se em consideração sobre qual papel sua construção teria para a memória da cidade de Cusco. Aponto ao leitor meus motivos para esse raciocínio, é que em cima das ruínas do Templo de Ouro, local destinado aos rituais sagrados de maior expressividade, ofertados a deidade Inca suprema: Inty (Sol), foi construído por ordem de Francisco Pizzaro - sanguinolento conquistador - o Convento de Santo Domingo.
 
Vista lateral do Convento de Santo Domingo

Esse local, de onde se originou a primeira universidade das Américas (San Marcos), foi antecedido por um dos locais sagrados mais importantes no tempo do Tahuantinsuyo, que possuía uma ornamentação com paredes em completo ouro antes da pilhagem espanhola. O fato é que as construções Incaicas são tão resistentes ao tempo, são erguidas para permanecerem intactas, que vários terremotos derrubaram o barroco europeu, mas nunca as paredes do antigo tempo que tentaram esconder. Na década de 90, uma escavação arqueológica pôde encontrar em seu entorno, abaixo inclusive do muro Inca, um muro ainda mais antigo, do qual ainda não se sabe precisar sua origem, os hábitos ou até mesmo quem eram seus construtores. Três estratificações em um verdadeiro monumento do tempo e da memória de uma cidade. Diferente dos exemplos trazidos por Freud, o ‘Q´oricancha’ não é só um símbolo mnêmico, mas a rasura, a obliteração de vários traços, perdidos no choque entre culturas tão diferentes, é uma construção que se aproxima metaforicamente muito mais do que vem a ser o sintoma para o neurótico: uma construção muito mais para fazer esquecer algo, do que para recordá-lo. Gostaria de conversar sobre isso com amigos psicanalistas.
 

Vista do antigo Templo do Sol, atual Igreja e Convento de Santo Domingo. Abaixo: muro de contrução pré-incaica.
  


domingo, 7 de agosto de 2011

Uma outra fronteira

Copacabana - Bolívia
No caminho até Kasani, cidade fronteiriça entre Peru e Bolívia, encontrava-se a pequena cidade de Copacabana, com seus 3.840 metros acima do nível do mar. Local onde pude ver o sol se pôr de maneira esplendorosa, diante da imensidão do lago navegável mais alto do mundo, parecia mesmo estar diante do oceano e sua linha do horizonte. Ainda me recordo das praias gélidas desse vilarejo, com um nome familiar aos brasileiros, que associam imediatamente a famosa praia carioca, mas que não oferta outra semelhança além de tal sonoridade. Quando cheguei, após deixar a mochila no hotel, senti um ímpeto de subir um pequeno serro, uma ânsia de mirar o cair do sol. Pensava mais uma vez no que cabia a história rasurar o passado. 
Pôr do sol - Lago Titicaca
 Descobri pelas andanças que “Copakawana” era a divindade andina símbolo da fertilidade e o território, com localização estratégica às margens do Titicaca, era assim chamado devido oferendas e cultos religiosos à deidade. A cidade se transformou em Nossa Senhora de Copacabana logo após a tomada pelos espanhóis, com a subsequente fundação de sua igreja católica de mesmo nome no local do antigo templo. Assim, pude constatar que o espaço anteriormente destinado ao “profano”, na atualidade manifesta cultos e oferendas à “Virgen de Copacabana”. Local de peregrinação, muitos levam seus automóveis e bens para a benção da Virgem, o que ainda configura para os dois países um sítio sagrado. Anos mais tarde, lendo os “Comentarios Reales”, de Garcilaso de la Vega, descobri que o berço da cultura incaica estava há alguns metros dali, em uma pequena ilha, denominada “del Sol” 
Isla del Sol
. Foi nesse pedaço de terra que nasceu o primeiro inca, Manco Capac, fundador da Q´osqo. O filho do sol, o primeiro monarca inca, deixou aos súditos uma moral fundamental para a sobrevivência coletiva, sustentada em três pilares: “Ama Sua”, “Ama Llulla” e “Ama Qilla”, significantes quéchuas que sucessivamente querem dizer: não roubar, não mentir e não ser preguiçoso. Talvez por esses preceitos um grande império, o Tawantinsuyo, tenha chegado ao ano de 1500 com uma população de cerca 14 milhões de habitantes, dos quais os registros históricos dão indícios de que não havia fome, nem tampouco miserabilidade. De fato, minha curiosidade por essa civilização se tornou explícita nessa cidade. Outro fator significativo, que aprendi ao caminhar pela Isla del Sol, foi como os antepassados lidavam com a temática da morte. As mumificações eram hábito comum, não só para os “nobres”, mas para a população em geral.  A crença era baseada no fato de que ao
Representação de um altar com oferenda aos antepassados
 morto eram ofertados os mesmos itens, inclusive alimentos, oferecidos aos vivos. Dessa forma, os entes queridos eram deixados em locais sagrados, dentro ou perto dos domicílios, donde constantemente eram reverenciados. Quando obtive essa informação de um guia local, compreendi o fato de que os cemitérios por toda Bolívia são floridos e cuidados, com presença constante de pessoas. Penso que por lá a morte é algo lembrado e reificado, diferente de como muitos de nós brasileiros a tratamos. Inquietante essa questão: como cada cultura, em diferentes contextos, simboliza o insimbolizável da morte? Antes de atravessar a fronteira, após a visita à famosa Isla, havia me dado conta que já não estava mais sozinho, uma vez que viajava com um grupo de paulistanos, rumo à antiga capital imperial: Cusco.

domingo, 31 de julho de 2011

Antagonismo cultural

La Paz - Capital administrativa da Bolívia
Ao deixar “las rutas del Che” para trás não pude depojar das impressões territoriais da capital do departamento de Santa Cruz, cidade capitalisticamente desenvolvida do oriente boliviano, oriunda do povoamento espanhol e das missões jesuíticas. Sim, um traço diferente da razia espanhola que encontraria por todos os cantos e desencantos da rota até Machu Picchu. Ao chegar em La Paz, com toda falta de ar possível, pude identificar a razão de um pequeno conflito ideológico que se acirraria anos mais tarde entre o ocidente e o oriente boliviano. A querela entre os collas ocidentais e os cambas orientais apresentava um estrutura semelhante aos dos conflitos partidários entre a esquerda e a direita na América latina, da polaridade do federalismo distributivo versus a concentração de renda nos territórios detentores dos meios de produção. Intolerância, separatismo, projetos sociais de inclusão e distribuição de renda, todo um conjunto de variáveis políticas que configuravam a camada manifesta das maiores contradições da colonização da civilização  Inca, sua sujeição à cultura Européia. A necessidade de apagar os vestígios dos antigos era evidente em Santa Cruz de la Sierra. A resistência maciça dos collas havia acabado de eleger seu primeiro representante à Presidência da República. Diante dessa situação eu me perguntava: quanta contradição pode suportar um povo que possui duas capitais? Havia descoberto que Sucre era a capital constitucional/judicial da Bolívia e La Paz a sede administrativa. Entendi também porque “hojas de coca” são utilizadas como estimulante natural, pois com tanta ladeira e ar tão rarefeito café nenhum poderia servir como substância energética. Conversei com um dono de uma banca de revista que contou bastante sobre essas questões, pela foto se nota sua posição diante dos conflitos em seu país.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Kevin & Maria de los Angeles

Trem da Morte - Estação Puerto Quijarro

Santa Cruz de la Sierra - Plaza 24 de septiembr
Adentrar em um país desconhecido por via terrestre me parece sempre uma experiência curiosa. Claro que  há uma boa dose de imaginário sobre a cultura, os costumes, os hábitos e a língua dos cidadãos, mas não são esses aspectos que costumam chamar a minha atenção. O que mais me intriga são os que junto comigo fazem a travessia. Observo com aguçada intuição voyeurística os demais e isso quase sempre me provoca riso. O mais engraçado é que não sinto esse prazer quando estou só, não consigo me perceber quando me desloco até um determinado destino, realizando os trâmites legais, passaporte, registro e tal, até encontrar um local para hospedar. Naquele setembro eu sentia algo antes de adentrar pela Bolívia, já havia dormido por duas noites em Corumbá e estava entediado com a cidade, permanecendo em função da disponibilidade de horário dos coches, sem muita coisa para fazer – era ansiedade, ou vigor de ser e chegar. Tinha que pegar o Trem depois da aduana, mineiro como sou, não podia perder esse trem. Dentro de Puerto Quijaro, com minha mochila, era só embarcar, já tinha comprado o boleto ainda no Brasil e cruzei a linha imaginária poucos minutos antes da saída do famoso Trem da Morte. Muitos turistas, mochileiros, alguns desesperados com suas equipagens, outros com bagagem de mão, miscelânea de sotaques. Eu e o livro-guia, leitura de alguns roteiros, o que possivelmente estaria por vir. Um sotaque espanhol no português do casal ao meu lado. Pensei comigo que poderiam ser turistas de meia idade, voltei à leitura. Uma garota de Brasília me pediu informações sobre a rota para Cusco e lhe emprestei o guia. A mulher ao lado se dirigiu a mim e perguntou: vai para Machu Picchu? A resposta imediata produziu horas de conversação com o casal, cujo índice de misericórdia haveria explodido se a humanidade tivesse inventado uma máquina para medi-lo. Maria era uma senhora mãe de cinco filhos, dona de casa que acompanhava o marido em suas viagens, ela de La Paz, ele, Kevin, de Potosí. Todas as dicas da cidade destino, Santa Cruz de la Sierra, foram repassadas por ambos: hostel, local para comer, informações turísticas, tudo, até um local para reparar meu MP4, inclusive me acompanharam. Kevin era um recém convertido ao evangelho e se mostrava muito trabalhador. Com Maria e os filhos, eles viviam em Corumbá, local de onde agregavam várias encomendas de serviços gráficos e plotagem, para realizá-los do outro lado da fronteira. Realizavam serviços em Pesos bolivianos e cobravam preço em Real, assim extraiam uma margem de lucro donde podiam sobreviver. Posso dizer que eram Borderlines, sem chiste, viviam na fronteira mesmo, eram do “limite”. Ambos foram me orientando sobre a cultura Andina. Kevin me dizia sobre o santuário de Samaipata, um local destinado aos rituais religiosos, com ruínas e muita história, que pude ver com meus próprios olhos.

Samaipata

Traçamos planos para minha viagem, muitas dicas sobre as cidades bolivianas, locais que deveria evitar, roteiros econômicos de tempo e dinheiro, realmente me ajudaram bastante. Antes de partir eu havia comentado com os dois que poderia trazer grupos de turistas brasileiros para conhecer a Bolívia, Kevin se tornou muito otimista com isso e fez planos. Eu já tinha inclusive um local para ficar ao regressar da Bolívia. Maria era de los Angeles, muito atenciosa, senti um carinho maternal, um cuidado que momentaneamente preencheu esse buraco deixado pela ausência materna em minha vida, coisa que depois dos onze anos nunca mais havia sentido. E lembrar que antes, no Brasil, os colegas e demais pessoas me diziam que eu era louco de viajar sozinho, que eu poderia encontrar pessoas más, que os bolivianos estavam quase em guerra com o Brasil, pela estatização da Petrobrás comandada por Evo. Tudo ao avesso. Certamente esse encontro foi fundamental para descobrir que boas pessoas existem, logo eu, tão preconceituoso com pessoas religiosas, fui rendido pela coragem desse casal, pelo sentimento que manifestavam um pelo outro, pelo cuidado comigo. Mantivemos contato mesmo anos após a viagem e meu coração doeu profundamente quando Maria me telefonou e disse que seu marido havia falecido subitamente. Olha o que o amigo me deixou de recordação: Samaipata. Alguns anos depois, conversando com minha esposa, pude entender o significado dessa palavra, que em quechua quer dizer: Samai/descanso e pata/lugar, ou seja: lugar de descanso.
Samaipata

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Rumo ao Altiplano

Dia 07 de setembro de 2006, aos 27 anos, com um mochilão nas costas, parti da rodoviária de Belo Horizonte, com um destino em mente: chegar a Machu Picchu, maravilha do mundo. Poca plata, muchas ganas, meu lema era desfrutar ao máximo o inusitado. Trinta dias de férias, tempo suficiente para viajar para fora dos contornos da Nação. Eu ainda não havia assistido ao "Into the Wild" ou "Na natureza selvagem", ainda bem, porque não me faltava coragem para seguir sozinho a caminhada, era só pulsão de vida. Uma travessia, com surpresas e paisagens belíssimas, chamada Bolívia, me separava do objetivo e do regresso, felizmente as fronteiras eram simbólicas e nada mais que isso. Nesse pouco tempo, nesse pedaço de chão da América do Sul vivi uma experiência singular, mítica, eterna. Conheci gente de todo mundo, me apaixonei, cresci e até me tornei adulto nesse rito de passagem tardio. Fiz poesia, fui poema. É com uma experiência que gostaria de começar, mas, diferente da meta, não saber onde chegar. Nesse BLOG quero compartilhar, mas também produzir no leitor o desejo de ir além de suas fronteiras habituais, do "habitus", pois isso muda tudo. É que descobri que sou um pouco xamã. Nos Andes me disseram que as pessoas que nascem com a bunda virada para a lua, tal como eu, são consideradas mediadoras do mundo super e supra-sensível, curandeiros, feiticeiros. Então, se essa dádiva me foi concedida, meu encanto está lançado. 

El Inca y el quintu - Artista desconhecido. Foto tirada no Ukukus Club Cusco.