domingo, 31 de julho de 2011

Antagonismo cultural

La Paz - Capital administrativa da Bolívia
Ao deixar “las rutas del Che” para trás não pude depojar das impressões territoriais da capital do departamento de Santa Cruz, cidade capitalisticamente desenvolvida do oriente boliviano, oriunda do povoamento espanhol e das missões jesuíticas. Sim, um traço diferente da razia espanhola que encontraria por todos os cantos e desencantos da rota até Machu Picchu. Ao chegar em La Paz, com toda falta de ar possível, pude identificar a razão de um pequeno conflito ideológico que se acirraria anos mais tarde entre o ocidente e o oriente boliviano. A querela entre os collas ocidentais e os cambas orientais apresentava um estrutura semelhante aos dos conflitos partidários entre a esquerda e a direita na América latina, da polaridade do federalismo distributivo versus a concentração de renda nos territórios detentores dos meios de produção. Intolerância, separatismo, projetos sociais de inclusão e distribuição de renda, todo um conjunto de variáveis políticas que configuravam a camada manifesta das maiores contradições da colonização da civilização  Inca, sua sujeição à cultura Européia. A necessidade de apagar os vestígios dos antigos era evidente em Santa Cruz de la Sierra. A resistência maciça dos collas havia acabado de eleger seu primeiro representante à Presidência da República. Diante dessa situação eu me perguntava: quanta contradição pode suportar um povo que possui duas capitais? Havia descoberto que Sucre era a capital constitucional/judicial da Bolívia e La Paz a sede administrativa. Entendi também porque “hojas de coca” são utilizadas como estimulante natural, pois com tanta ladeira e ar tão rarefeito café nenhum poderia servir como substância energética. Conversei com um dono de uma banca de revista que contou bastante sobre essas questões, pela foto se nota sua posição diante dos conflitos em seu país.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Kevin & Maria de los Angeles

Trem da Morte - Estação Puerto Quijarro

Santa Cruz de la Sierra - Plaza 24 de septiembr
Adentrar em um país desconhecido por via terrestre me parece sempre uma experiência curiosa. Claro que  há uma boa dose de imaginário sobre a cultura, os costumes, os hábitos e a língua dos cidadãos, mas não são esses aspectos que costumam chamar a minha atenção. O que mais me intriga são os que junto comigo fazem a travessia. Observo com aguçada intuição voyeurística os demais e isso quase sempre me provoca riso. O mais engraçado é que não sinto esse prazer quando estou só, não consigo me perceber quando me desloco até um determinado destino, realizando os trâmites legais, passaporte, registro e tal, até encontrar um local para hospedar. Naquele setembro eu sentia algo antes de adentrar pela Bolívia, já havia dormido por duas noites em Corumbá e estava entediado com a cidade, permanecendo em função da disponibilidade de horário dos coches, sem muita coisa para fazer – era ansiedade, ou vigor de ser e chegar. Tinha que pegar o Trem depois da aduana, mineiro como sou, não podia perder esse trem. Dentro de Puerto Quijaro, com minha mochila, era só embarcar, já tinha comprado o boleto ainda no Brasil e cruzei a linha imaginária poucos minutos antes da saída do famoso Trem da Morte. Muitos turistas, mochileiros, alguns desesperados com suas equipagens, outros com bagagem de mão, miscelânea de sotaques. Eu e o livro-guia, leitura de alguns roteiros, o que possivelmente estaria por vir. Um sotaque espanhol no português do casal ao meu lado. Pensei comigo que poderiam ser turistas de meia idade, voltei à leitura. Uma garota de Brasília me pediu informações sobre a rota para Cusco e lhe emprestei o guia. A mulher ao lado se dirigiu a mim e perguntou: vai para Machu Picchu? A resposta imediata produziu horas de conversação com o casal, cujo índice de misericórdia haveria explodido se a humanidade tivesse inventado uma máquina para medi-lo. Maria era uma senhora mãe de cinco filhos, dona de casa que acompanhava o marido em suas viagens, ela de La Paz, ele, Kevin, de Potosí. Todas as dicas da cidade destino, Santa Cruz de la Sierra, foram repassadas por ambos: hostel, local para comer, informações turísticas, tudo, até um local para reparar meu MP4, inclusive me acompanharam. Kevin era um recém convertido ao evangelho e se mostrava muito trabalhador. Com Maria e os filhos, eles viviam em Corumbá, local de onde agregavam várias encomendas de serviços gráficos e plotagem, para realizá-los do outro lado da fronteira. Realizavam serviços em Pesos bolivianos e cobravam preço em Real, assim extraiam uma margem de lucro donde podiam sobreviver. Posso dizer que eram Borderlines, sem chiste, viviam na fronteira mesmo, eram do “limite”. Ambos foram me orientando sobre a cultura Andina. Kevin me dizia sobre o santuário de Samaipata, um local destinado aos rituais religiosos, com ruínas e muita história, que pude ver com meus próprios olhos.

Samaipata

Traçamos planos para minha viagem, muitas dicas sobre as cidades bolivianas, locais que deveria evitar, roteiros econômicos de tempo e dinheiro, realmente me ajudaram bastante. Antes de partir eu havia comentado com os dois que poderia trazer grupos de turistas brasileiros para conhecer a Bolívia, Kevin se tornou muito otimista com isso e fez planos. Eu já tinha inclusive um local para ficar ao regressar da Bolívia. Maria era de los Angeles, muito atenciosa, senti um carinho maternal, um cuidado que momentaneamente preencheu esse buraco deixado pela ausência materna em minha vida, coisa que depois dos onze anos nunca mais havia sentido. E lembrar que antes, no Brasil, os colegas e demais pessoas me diziam que eu era louco de viajar sozinho, que eu poderia encontrar pessoas más, que os bolivianos estavam quase em guerra com o Brasil, pela estatização da Petrobrás comandada por Evo. Tudo ao avesso. Certamente esse encontro foi fundamental para descobrir que boas pessoas existem, logo eu, tão preconceituoso com pessoas religiosas, fui rendido pela coragem desse casal, pelo sentimento que manifestavam um pelo outro, pelo cuidado comigo. Mantivemos contato mesmo anos após a viagem e meu coração doeu profundamente quando Maria me telefonou e disse que seu marido havia falecido subitamente. Olha o que o amigo me deixou de recordação: Samaipata. Alguns anos depois, conversando com minha esposa, pude entender o significado dessa palavra, que em quechua quer dizer: Samai/descanso e pata/lugar, ou seja: lugar de descanso.
Samaipata

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Rumo ao Altiplano

Dia 07 de setembro de 2006, aos 27 anos, com um mochilão nas costas, parti da rodoviária de Belo Horizonte, com um destino em mente: chegar a Machu Picchu, maravilha do mundo. Poca plata, muchas ganas, meu lema era desfrutar ao máximo o inusitado. Trinta dias de férias, tempo suficiente para viajar para fora dos contornos da Nação. Eu ainda não havia assistido ao "Into the Wild" ou "Na natureza selvagem", ainda bem, porque não me faltava coragem para seguir sozinho a caminhada, era só pulsão de vida. Uma travessia, com surpresas e paisagens belíssimas, chamada Bolívia, me separava do objetivo e do regresso, felizmente as fronteiras eram simbólicas e nada mais que isso. Nesse pouco tempo, nesse pedaço de chão da América do Sul vivi uma experiência singular, mítica, eterna. Conheci gente de todo mundo, me apaixonei, cresci e até me tornei adulto nesse rito de passagem tardio. Fiz poesia, fui poema. É com uma experiência que gostaria de começar, mas, diferente da meta, não saber onde chegar. Nesse BLOG quero compartilhar, mas também produzir no leitor o desejo de ir além de suas fronteiras habituais, do "habitus", pois isso muda tudo. É que descobri que sou um pouco xamã. Nos Andes me disseram que as pessoas que nascem com a bunda virada para a lua, tal como eu, são consideradas mediadoras do mundo super e supra-sensível, curandeiros, feiticeiros. Então, se essa dádiva me foi concedida, meu encanto está lançado. 

El Inca y el quintu - Artista desconhecido. Foto tirada no Ukukus Club Cusco.