Escrever não foi fácil para mim, na infância tremia ao escutar os berros do meu pai, que exigia que minha grafia fosse como a perfeição da sua. Depois disso nunca mais tive uma letra fixa, traço que sempre se modificou comigo. Eletrônica atualmente, as linhas com as quais discorro a chegada a um destino são insuficientes para dizer como Machu Picchu deixou de ser uma imaginação minha, para se tornar uma grande descoberta: a de que posso chegar onde bem quiser, inclusive, em locais que carro nenhum me levaria. Naquele setembro de sonhos e lembranças agradáveis, a cidade perdida dos Incas caiu como uma verdadeira recompensa, donde pude extrair algo muito mais valioso do que ouro. Desde Aguas Caliententes subimos caminhando em meio a trilha que atravessa a estrada por onde percorrem os “micros” lotados de turistas. Fui o primeiro a chegar à entrada do santuário e fiquei esperando alguns minutos o restante do grupo: um guia cusqueño, um japonês e três paulistas. A primeira informação que tive, foi a de que em 1911, Hiran Binghan, o arqueólogo norte-americano, apenas havia redescoberto as ruínas, de maneira destoante da versão difundida mundialmente pela história. Em meados do século XIX o local já era visitado por pesquisadores e muitos nativos tinham conhecimento de sua localização geográfica. Gosto muito de escutar essas anedotas, que desconstroem versões originais, quase sempre contatas por um norte-americano sempre cheio de boas intenções ao encontrar algo valioso, desses que enquanto puder ser dono de uma descoberta, o Pai, quererá ser. Considerações à parte, a “Ciudad Perdida” permanece como isso que restou, um conjunto arquitetônico revelado ao mundo em sua imponência, mimetização viva de como viviam alguns dos cidadãos de uma civilização destroçada pela fúria ganaciosa do espanhóis. Muitas teorias históricas tentam ilustrar o que foi ou representou a cidadela para o Tahuantinsuyo. Há pesquisas que indicam que o local era um santuário religioso habitado por virgens; outras hipóteses apontam para um local que era destinado a ser a casa de campo do antigo imperador Pachacutec, que fugia do inverno rigoroso em Cusco, também comentam sobre a possibilidade de ser um palácio Real, ou, um mausoléu. Enfim, pouco disso importou quando caminhei por suas ruelas e “escaleras”, muito menos os paspalhos que com suas mãos adiante tentavam buscar alguma energia mística do cosmos. Senti esse ímpeto de subir, de chegar ao alto, ignorei totalmente a montanha que da nome ao sítio (velha montanha = Machu Pikchu em quéchua) e fui guiado solitariamente pelo desejo de chegar ao topo do Huayna Picchu, a jovem montanha, com formato simétrico de um rosto esculpido em meio à cordilheira. Sim, chegar ao topo da montanha jovem, ao ponto mais alto de minha juventude. Simbolicamente adulto.
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
terça-feira, 16 de agosto de 2011
‘Q´oricancha’
Cusco, impressão histórica viva, síntese de movimentos, efeito da colonização no continente sul, esse mesmo que conhecemos em nome pela alteridade em gênero do italiano Vespúcio.
Uma cidade onde é possível ver os restos, não só do passado, em sua arquitetura única, ou, de suas extrações arqueológicas, mas de tudo aquilo que permanece ainda mimetizado pelos gestos mais corriqueiros, nas crenças de seus cidadãos, na torre de babel que se edifica em suas ‘calles’. ‘Q´osqo’ impressiona não só pelo ar rarefeito e sua ausência de árvores, da qual só fui me dar conta quando estive ali pela quarta vez, ou pelo desfile colorido de panos que carregam crianças, seus ‘aguayos’, ou pelos rostos de expressiva orientalidade de seus cidadãos que, muitas vezes, ingenuamente pensamos serem de indígenas que andavam nus. Não pelo cheiro de cominho, ou o às vezes acerbo com o qual nos deparamos em suas lanchonetes ou restaurantes, nem tampouco pelo ritmo cosmopolita e noturno de suas ‘dancings’. Como disse antes, Cusco é a própria impressão, estampada em um vale entre as montanhas, uma mescla de elementos universais tão singulares em sua paisagem. Em geral, pode-se dizer que é a porta de entrada para àqueles querem chegar a Macchu Picchu e acaba sendo apenas isso para alguns, cada qual com seu interesse. Mas se adentramos em seu cotidiano, se demoramos um pouco mais em investigar seus meandros descobrimos um patrimônio incalculável, muito maior do que o contido na cidadela perdida que atrai turistas de todo mundo. Se não fosse pela destruição espanhola, seria uma das cidades mais exóticas do mundo, acho que mesmo assim ainda o é. De fato, em seu perímetro urbano nos deparamos com uma série de rasuras, dentre as quais gostaria de citar como exemplo o edifício ‘Q´oricancha’, local donde podemos notar três tempos históricos em sua construção: o pré-incaico, o incaico e espanhol. Esse é um dos locais que vale o esforço para conhecer. Fiquei hospedado ali perto e em minha primeira caminhada por Cusco fui surpreendido pela beleza arquitetônica do prédio, mas quando soube um pouco mais sobre sua história, fiquei a sorrir um bom tempo, em silêncio contemplativo. Recordei do exemplo de S. Freud, extraído das Cinco Lições, quando utilizou a metáfora dos monumentos conhecidos pelos ingleses como Charing Cross e The Monument para clarificar a vida dos doentes que sofreriam de reminiscências passadas. Sigmund faz menção ao sintoma neurótico em sua analogia ao sofrimento de um londrino que supostamente choraria diante de um monumento erguido em homenagem ao cortejo fúnebre de uma rainha ou diante de outro marco construído para reviver a memória de um incêndio que afetou Londres no século XVII. Símbolos mnêmicos de experiências pregressas, os sintomas são fixados como tais edificações e funcionam como traços de memória. Interessante generalização, mas essa lógica dificilmente seria aplicada ao ‘Q´oricancha’, levando-se em consideração sobre qual papel sua construção teria para a memória da cidade de Cusco. Aponto ao leitor meus motivos para esse raciocínio, é que em cima das ruínas do Templo de Ouro, local destinado aos rituais sagrados de maior expressividade, ofertados a deidade Inca suprema: Inty (Sol), foi construído por ordem de Francisco Pizzaro - sanguinolento conquistador - o Convento de Santo Domingo.
Esse local, de onde se originou a primeira universidade das Américas (San Marcos), foi antecedido por um dos locais sagrados mais importantes no tempo do Tahuantinsuyo, que possuía uma ornamentação com paredes em completo ouro antes da pilhagem espanhola. O fato é que as construções Incaicas são tão resistentes ao tempo, são erguidas para permanecerem intactas, que vários terremotos derrubaram o barroco europeu, mas nunca as paredes do antigo tempo que tentaram esconder. Na década de 90, uma escavação arqueológica pôde encontrar em seu entorno, abaixo inclusive do muro Inca, um muro ainda mais antigo, do qual ainda não se sabe precisar sua origem, os hábitos ou até mesmo quem eram seus construtores. Três estratificações em um verdadeiro monumento do tempo e da memória de uma cidade. Diferente dos exemplos trazidos por Freud, o ‘Q´oricancha’ não é só um símbolo mnêmico, mas a rasura, a obliteração de vários traços, perdidos no choque entre culturas tão diferentes, é uma construção que se aproxima metaforicamente muito mais do que vem a ser o sintoma para o neurótico: uma construção muito mais para fazer esquecer algo, do que para recordá-lo. Gostaria de conversar sobre isso com amigos psicanalistas.
‘Q´oricancha’ - Templo de Ouro |
Vista lateral do Convento de Santo Domingo |
Vista do antigo Templo do Sol, atual Igreja e Convento de Santo Domingo. Abaixo: muro de contrução pré-incaica. |
domingo, 7 de agosto de 2011
Uma outra fronteira
Copacabana - Bolívia |
No caminho até Kasani, cidade fronteiriça entre Peru e Bolívia, encontrava-se a pequena cidade de Copacabana, com seus 3.840 metros acima do nível do mar. Local onde pude ver o sol se pôr de maneira esplendorosa, diante da imensidão do lago navegável mais alto do mundo, parecia mesmo estar diante do oceano e sua linha do horizonte. Ainda me recordo das praias gélidas desse vilarejo, com um nome familiar aos brasileiros, que associam imediatamente a famosa praia carioca, mas que não oferta outra semelhança além de tal sonoridade. Quando cheguei, após deixar a mochila no hotel, senti um ímpeto de subir um pequeno serro, uma ânsia de mirar o cair do sol. Pensava mais uma vez no que cabia a história rasurar o passado.
Descobri pelas andanças que “Copakawana” era a divindade andina símbolo da fertilidade e o território, com localização estratégica às margens do Titicaca, era assim chamado devido oferendas e cultos religiosos à deidade. A cidade se transformou em Nossa Senhora de Copacabana logo após a tomada pelos espanhóis, com a subsequente fundação de sua igreja católica de mesmo nome no local do antigo templo. Assim, pude constatar que o espaço anteriormente destinado ao “profano”, na atualidade manifesta cultos e oferendas à “Virgen de Copacabana”. Local de peregrinação, muitos levam seus automóveis e bens para a benção da Virgem, o que ainda configura para os dois países um sítio sagrado. Anos mais tarde, lendo os “Comentarios Reales”, de Garcilaso de la Vega, descobri que o berço da cultura incaica estava há alguns metros dali, em uma pequena ilha, denominada “del Sol”
. Foi nesse pedaço de terra que nasceu o primeiro inca, Manco Capac, fundador da Q´osqo. O filho do sol, o primeiro monarca inca, deixou aos súditos uma moral fundamental para a sobrevivência coletiva, sustentada em três pilares: “Ama Sua”, “Ama Llulla” e “Ama Qilla”, significantes quéchuas que sucessivamente querem dizer: não roubar, não mentir e não ser preguiçoso. Talvez por esses preceitos um grande império, o Tawantinsuyo, tenha chegado ao ano de 1500 com uma população de cerca 14 milhões de habitantes, dos quais os registros históricos dão indícios de que não havia fome, nem tampouco miserabilidade. De fato, minha curiosidade por essa civilização se tornou explícita nessa cidade. Outro fator significativo, que aprendi ao caminhar pela Isla del Sol, foi como os antepassados lidavam com a temática da morte. As mumificações eram hábito comum, não só para os “nobres”, mas para a população em geral. A crença era baseada no fato de que ao
morto eram ofertados os mesmos itens, inclusive alimentos, oferecidos aos vivos. Dessa forma, os entes queridos eram deixados em locais sagrados, dentro ou perto dos domicílios, donde constantemente eram reverenciados. Quando obtive essa informação de um guia local, compreendi o fato de que os cemitérios por toda Bolívia são floridos e cuidados, com presença constante de pessoas. Penso que por lá a morte é algo lembrado e reificado, diferente de como muitos de nós brasileiros a tratamos. Inquietante essa questão: como cada cultura, em diferentes contextos, simboliza o insimbolizável da morte? Antes de atravessar a fronteira, após a visita à famosa Isla, havia me dado conta que já não estava mais sozinho, uma vez que viajava com um grupo de paulistanos, rumo à antiga capital imperial: Cusco.
Pôr do sol - Lago Titicaca |
Isla del Sol |
Representação de um altar com oferenda aos antepassados |
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