A estrada era a mesma, mas o percurso agora revelava novas paisagens e configurações antes não percebidas. A perspectiva focal estava apontada para outro destino. O retorno apresentava uma nova intenção, que consistiu inicialmente em percorrer ao inverso o trajeto empreendido. E assim foi: Cusco, Copacabana e La Paz. Contudo, havia tempo e não bastava um simples regresso, algo mais poderia ser feito com o resto da viagem. Posso dizer que, ainda hoje, o que sobrou dessas experiências são causas, carrego comigo razões e descarto conseqüências inúteis. Sabia que poderia conhecer novos lugares, isso já estava planejado e foi com ímpeto de novidade que parti do “Cementério” da Capital Constitucional da Bolívia para desvelar mais um intrigante sítio arqueológico: Tiahuanaco. Teorias controversas apontam que o local já era habitado por aldeões que ali viviam ali por volta do ano 12.000A.C. De certo modo, dentre a multiplicidade de pesquisas antropológicas, consensualmente estipulam, com relativo grau de confiabilidade, que por volta do ano de 1580A.C foram realizadas as primeiras construções na cidade. O apogeu cultural de Tiahuanaco foi
alcançado entre os anos de 374D.C à 900D.C, época clássica em que foram erguidos monumentos que fizeram da cidade um grande centro religioso e cultural. Reza a lenda que o nome Tiahuanaco foi originado quando da chegada de um monarca Inca, que subjugou um emissário que veio ao seu encontro, dizendo-lhe: “senta-se guanaco” (guanaco é uma espécie de camelo andino ou lhama), ou em quechua: "Tiai, huanacu". Essa descoberta me pasma, tomei conhecimento que a cultura do Tahuantinsuyo, ao se expandir, colonizou pequenos grupos civilizatórios, dominando-os ideologicamente ou através da guerra. E assim foi com essa cultura pré-incaica. Os Tiahuanacotas produziram grandes monumentos arquitetônicos, muitos dos quais centrados no valor mitológico e religioso – escultura em blocos de pedra representando monólitos antropomórficos, templos e portais sagrados. Mas foram invadidos e dominados pelos Reinos Collas e posteriormente pelos Incas. Esses últimos incorporaram ao seu império algumas crenças, tecnologias, principalmente a arquitetura; além de conceituações político-religiosas. De fato, o agrupamento histórico revela fatos importantes para o entendimento das culturas que se fundiram para dar origem ao antigo Tahuantinsuyo. No entanto, um aspecto
contribui para o
esquecimento de marcos históricos, tanto para o povo Colla que habitou a região, quanto para os dominadores Incas. O fator consiste na ausência de qualquer tipo de escrita que pudesse grafar no tempo acontecimentos em uma coesão histórica. Dois idiomas distintos (aymara e quechua), duas culturas que se assimilaram e fundiram-se, mas que foram submetidas ao choque com o mundo europeu ocidental e seu furor expansionista. Resíduos culturais ainda vivos na gestualidade e saber do povo andino. Em Tiawanacu, a estratificação social perdurava tal como em Cusco, donde se podia notar a separação territorial dividida em: Hanan (os de cima) e Hurin (os de baixo), notadamente uma divisão entre ente os governantes e os governados. Essa constatação me levou a raciocinar sobre a organização social e sistemas de governança, uma vez que o exercício do poder estava associado
diretamente ao mediadores do mundo divino. De fato, desde um ponto de vista político, noto que um Sistema Monárquico igual ao do Tahuantinsuyo ou de qualquer outra ordem, qualquer um mencionado na história, seriam viáveis apenas em uma sociedade onde a vida política estaria intrinsecamente fundida à Religião, em um Estado Teocrático. Ao trazer essa conversa para nossos dias, pensando em formas de governo como a República ou a Democracia, percebo que tais Sistemas Políticos prescindem de um Estado Religioso, mas não das Religiões, fundamentais para o estabelecimento de padrões dóceis ao exercício de governança. Acredito que é nesse ponto que poderia me nomear como alguém próximo ao doutrinário Comunista, em sua configuração onde realmente o modelo de Estado poderia
dispensar totalmente os preceitos religiosos, seus mecanismos ideológicos de subserviência. Tal como para as culturas pré-incaicas, para os Incas e colonizadores europeus, a Religião tinha uma função de assegurar violações e conquistas, apregoando a submissão dos dominados, cujo caráter era inegavelmente político. Essa demarcação histórica de conflitos no continente Sul das Américas, permite também considerar-me um Freudiano. Isso pelo fato de que as culturas utilizam de modos agressivos para fazerem valer seus interesses, de modo bem semelhante às crianças. Civilizações produzem um conjunto de crenças tão valiosas ao povo, que por sua vez operam como modos de amenizar a angústia de seus habitantes e ordenar seus devires. No que se refere ao aspecto subjetivo dos cidadãos, a psicanálise atribui aos sentimentos de desamparo da infância à raiz do sentimento religioso, mecanismo que também constitui as divindades. Pouco antes de escrever esta postagem reli o “Mal estar na Civilização”, texto onde Freud diz com toda veemência que a Religião seria um delírio de massa oriundo do infantilismo psicológico, deformando o quadro da realidade. De fato, a vida política de qualquer país não está isenta desses efeitos, seja em maior ou em menor escala, a Religião encontra função ativa bem semelhante a que era exercida quando dos grandes encontros bélicos ordenados por monarcas expansionistas. Então, utilizando-me de uma orientação política e uma perspectiva ética, me ponho a refletir sobre como seria um Estado de Bem Estar Social, associado à noção de respeito às realidades subjetivas, em um mundo sem a polaridade sádico-masoquista de dominador-dominado, governante-governado, subjugador-subjugante, sem Deuses e mortais, sustentado apenas no Ser, tal como o filósofo de Freiburg no século XX apontou e que o de Paris ampliou – “aquilo que a humanidade fizer de si mesmo, escolhendo com responsabilidade a cada situação livre”. Acha que isso seria possível?
Puerta del Sol |
Monolito Ponce |
Monolito Fraile |
Hanan |
Hurin |
Guanacos |
Cabeça encravada |
Templo semi-subterrâneo e algumas de suas 175 cabeças encravadas |