terça-feira, 20 de setembro de 2011

Levanta-se Guanaco!

 

A estrada era a mesma, mas o percurso agora revelava novas paisagens e configurações antes não percebidas. A perspectiva focal estava apontada para outro destino. O retorno apresentava uma nova intenção, que consistiu inicialmente em percorrer ao inverso o trajeto empreendido. E assim foi: Cusco, Copacabana e La Paz. Contudo, havia tempo e não bastava um simples regresso, algo mais poderia ser feito com o resto da viagem. Posso dizer que, ainda hoje, o que sobrou dessas experiências são causas, carrego comigo razões e descarto conseqüências inúteis. Sabia que poderia conhecer novos lugares, isso já estava planejado e foi com ímpeto de novidade que parti do “Cementério” da Capital Constitucional da Bolívia para desvelar mais um intrigante sítio arqueológico: Tiahuanaco. Teorias controversas apontam que o local já era habitado por aldeões que ali viviam ali por volta do ano 12.000A.C. De certo modo, dentre a multiplicidade de pesquisas antropológicas, consensualmente estipulam, com relativo grau de confiabilidade, que por volta do ano de 1580A.C foram realizadas as primeiras construções na cidade. O apogeu cultural de Tiahuanaco foi
Puerta del Sol
 alcançado entre os anos de 374D.C à 900D.C, época clássica em que foram erguidos monumentos que fizeram da cidade um grande centro religioso e cultural. Reza a lenda que o nome Tiahuanaco foi originado quando da chegada de um monarca Inca, que subjugou um emissário que veio ao seu encontro, dizendo-lhe: “senta-se guanaco” (guanaco é uma espécie de camelo andino ou lhama), ou em quechua: "Tiai, huanacu". Essa descoberta me pasma, tomei conhecimento que a cultura do Tahuantinsuyo, ao se expandir, colonizou pequenos grupos civilizatórios, dominando-os ideologicamente ou através da guerra. E assim foi com essa cultura   pré-incaica. Os Tiahuanacotas produziram grandes monumentos arquitetônicos, muitos dos quais centrados no valor mitológico e religioso – escultura em blocos de pedra representando monólitos antropomórficos, templos e portais sagrados. Mas foram invadidos e dominados pelos Reinos Collas e posteriormente pelos Incas. Esses últimos incorporaram ao seu império algumas crenças, tecnologias, principalmente a arquitetura; além de conceituações político-religiosas. De fato, o agrupamento histórico revela fatos importantes para o entendimento das culturas que se fundiram para dar origem ao antigo Tahuantinsuyo. No entanto, um aspecto
Monolito Ponce
contribui para o
Monolito Fraile
esquecimento de marcos históricos,  tanto para o povo Colla que habitou a região, quanto para os dominadores Incas. O fator consiste na ausência de  qualquer tipo de escrita que pudesse grafar no tempo acontecimentos em uma coesão histórica. Dois idiomas distintos (aymara e quechua), duas culturas que se assimilaram e fundiram-se, mas que foram submetidas ao choque com o mundo europeu ocidental e seu furor expansionista. Resíduos culturais ainda vivos na gestualidade e saber do povo andino. Em Tiawanacu, a  estratificação social perdurava tal como em Cusco, donde se podia notar a separação territorial dividida em: Hanan (os de cima) e Hurin (os de baixo), notadamente uma divisão entre ente os governantes e os governados. Essa constatação me levou a raciocinar sobre a organização social e sistemas de governança, uma vez que o exercício do poder estava associado 
Hanan
diretamente ao mediadores do mundo divino. De fato, desde um ponto de vista político, noto que um Sistema Monárquico igual ao do Tahuantinsuyo ou de qualquer outra ordem, qualquer um mencionado na história, seriam viáveis apenas em uma sociedade onde a vida política estaria intrinsecamente fundida à Religião, em um Estado Teocrático. Ao trazer essa conversa para nossos dias, pensando em formas de governo  como a República ou a Democracia, percebo que tais Sistemas Políticos prescindem de um Estado Religioso, mas não das Religiões, fundamentais para o estabelecimento de padrões dóceis ao exercício de governança. Acredito que é nesse ponto que poderia me nomear como alguém próximo ao doutrinário Comunista, em sua configuração onde realmente o modelo de Estado poderia 
Hurin
dispensar totalmente os preceitos religiosos, seus mecanismos ideológicos de subserviência. Tal como para as culturas pré-incaicas, para os Incas e colonizadores europeus, a Religião tinha uma função de assegurar violações e conquistas, apregoando a submissão dos dominados, cujo caráter  era inegavelmente político.  Essa demarcação histórica de conflitos no continente Sul das Américas, permite também considerar-me um Freudiano. Isso pelo fato de que as culturas utilizam de modos agressivos para fazerem valer seus interesses, de modo bem semelhante às crianças. Civilizações produzem um conjunto de crenças tão valiosas ao povo, que  por sua vez operam como modos de amenizar a angústia de seus habitantes e ordenar seus devires. No que se refere ao aspecto subjetivo dos cidadãos, a psicanálise atribui aos sentimentos de desamparo da infância à raiz do sentimento religioso,  mecanismo que também constitui as divindades. Pouco antes de escrever esta postagem reli o “Mal estar na Civilização”, texto onde Freud diz com toda veemência que a Religião seria um delírio de massa oriundo do infantilismo psicológico, deformando o quadro da realidade. De fato, a vida política de qualquer país não está isenta desses efeitos, seja em maior ou em menor escala, a Religião encontra função ativa bem semelhante a que era exercida quando dos grandes encontros bélicos ordenados por monarcas expansionistas. Então, utilizando-me de uma orientação política e uma perspectiva ética, me ponho a refletir sobre como seria um Estado de Bem Estar Social, associado à noção de respeito às realidades subjetivas, em um mundo sem a polaridade sádico-masoquista de dominador-dominado, governante-governado, subjugador-subjugante, sem Deuses e mortais, sustentado apenas no Ser, tal como o filósofo de Freiburg no século XX apontou e que o de Paris ampliou – “aquilo que a humanidade fizer de si mesmo, escolhendo com responsabilidade a cada situação livre”. Acha que isso seria possível?

Guanacos

  
Cabeça encravada
Templo semi-subterrâneo e algumas de suas
175 cabeças encravadas




   

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pachamama


Atingir a meta, chegar ao objetivo, desejo nunca satisfeito. Conhecer Machu Picchu me causou uma imensa satisfação, uma sensação de adentrar ao desconhecido, superar as confabulações imaginárias ao longo do percurso e poder reconhecer que todo território tem uma história, contada por muitos. Mas o ponto fundamental, é que pude me tornar protagonista da minha própria, que, antes de ser narrativa, se configurou como uma abertura para um mundo irrefletido bem diferente do “habitus” costumeiro da vida em minha cidade. Isso mesmo, não havia qualquer construção reflexiva acerca dos aspectos culturais com os quais me deparei, apenas uma leve impressão de habitar o Mundo, com todas as dificuldades que o idioma me impunha, a cada nova situação uma maneira de encarar os fatos, sem a rigidez de um repertório previamente conhecido. É engraçado como atualmente verifico aspectos simples da vida cultural aqui no Brasil e me ponho a questionar com outros olhos, com outra configuração de valores, agregados às impressões que tal experiência produziu em mim. Por isso, o leitor deve desconsiderar completamente a centralidade dessa narração, não se trata de uma propriedade, do meu Eu, mas disso que permanece ainda como resto e que tento contornar nessa escrita, que pode ser lida a partir de múltiplos olhares. De fato caminhei por entre pedras, mas com um sentimento de coisa viva, com ânsia de chegar. A reflexão só veio depois, agora, quase cinco anos passados. O retorno à Cusco naquela ocasião, sozinho novamente, provocou-me a impressão de que agora cabia o regresso. Uma mescla de realização e frustração por ter atingido o  
Vista noturna da Plaza de Armas - Cusco
 destino primordial da viagem, por ter satisfeito uma intenção em ato, me fazia querer mais. Muita coisa havia ficado, deixei uma boa parte do orgulho, da insegurança e dos meus medos. Mas encontrei algo muito valioso, que de qualquer modo insistia em permanecer como uma busca. Anos depois vim a entender como a mitologia Inca configura a imago materna: a Pachamama, popularmente conhecida como a mãe-terra. Deidade que ocupa papel central na crença ancestral, que simboliza a fertilidade e a proteção, provedora da vida, mas que cobra um ônus significativo para cada um, uma parcela de responsabilidade mitificada em oferendas ou “pagos a la tierra”, mas que em contrapartida permite o acesso ao Desejo, ao querer e sua gratificação. O vocábulo Pacha pode ser traduzido de diversas maneiras, em quéchua pode significar: mundo, universo e tempo, substantivos que podem estar separados ou contidos nos outros. No catolicismo, a metáfora e metonímia dessa divindade feminina é representada também pela “Virgen de la Candelaria” (na Bolívia sua variação é a da “Virgen de Copacabana”, mencionada no Post: Uma outra Fronteira), cuja oferenda primordial consiste em acender uma vela, para obter a graça do cuidado e iluminação divina. Hoje, sinto que de alguma maneira precisava me reconciliar com isso que representava uma imagem perdida em minha vida, com algo da ordem da feminilidade. Carreguei por longos anos esse traço de ausência, uma falta de cuidado maternal, perdi minha mãe muito cedo. Certamente o mito da Pachamama prestou-se a realizar essa suplência, talvez fosse essa a minha busca, reencontrar-me com achego e vida. Ah, isso fez toda diferença, passei a desejar amor e creio que nessa ocasião realmente o encontrei. De certo modo, isso me faz perceber que quando fazemos turismo, ou adentramos em um local desconhecido, quase sempre estamos poluídos por nossas impressões e conceitos do mundo, nossos valores, nossos hábitos alimentares, etc. Mas há sempre a possibilidade radical de rompermos com aquilo que existe de mais cristalizado em cada um de nós. Definitivamente na volta à Cusco eu já não suportava mais o tempero forte de cominho, queria apenas comer algo costumeiro, nesse momento um bom espaguete era a única solução. No entanto, pressenti duas coisas quando estava para deixar a cidade: a primeira intuição que tive foi a de que retornaria ali, a segunda, que a volta para Belo Horizonte seria tão instigante quanto o percurso rumo ao destino inicial. Reconheço nessas linhas uma perspectiva demasiado antropológica, outras vezes, o tom intimista em minhas descrições torna-se preponderante. Por isso, gostaria de convidar o leitor a descrever suas próprias experiências de viagem, qualquer relato seria produtivo.
Pachamama
Representação pictográfica extraída de um monumento - Museu de Tiahuanaco - Bolívia